sexta-feira, 23 de junho de 2017

Bulhão Pato, o Juncal da Costa, por Zacharias d'Aça (V)

Aquella charneca do Juncal, descoberta, erma e agreste, onde, no verão, dardeja o sol implacável, e no inverno sopra o sudoeste, ouvindo-se ao longe o rolar das ondas, é uma paizagem profundamente triste, mas que não deixa de ter encantos. A solidão do deserto está alli, fronteira e contraposta ao bulicio da cidade!

Portuguese Shipping in the Mouth of the Tagus, S. Clegg, 1840.
Imagem: BBC Your Paintings

Um areal enorme, cortado de pequenos médãos, coberto duma alta, espessa, e hirta vegetação de juncos verde-negros, entresachados de raras moitas de joina. Arvores ... apenas algumas figueiras na horta do Miranda, á beira do rio! Isto e uns canteiros de morangos, eram os únicos signaes da vida vegetativa, naquelle chão árido e inhospito! A vinha, que elle alli plantara, agonisava, rasteira, enfesada e rachitica.

Plano hydrographico da barra do porto de Lisboa (detalhe), Francisco M. Pereira da Silva, 1857.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

A gente pouca, pallida, anémica, dizimada de continuo pelas febres. As aguas do inverno, estagnadas em charcos, tornados paúes, fermentando-as o sol ardente da canicula, evolavam de si miasmas mortaes, que o vento não varria, e que não poupavam nem as creanças, nem os adultos.

Bellas Artes, 16, Costa de Caparica, A. Roque Gameiro, Paulo Emílio Guedes & Saraiva
(cf. original de 1897 ref. em Branco e Negro, 17 de maio de 1897).
Imagem: Delcampe

Em dias de sol, com o ar parado, aquelle ermo descampado é uma amostra da paizagem africana  ! Ao fundo, para o lado do Oceano, as cabanas de colmo dos pescadores, baixas e negras, e perto d'ellas a capellinha branca; defronte o cemitério, com os cyprestes esguios, balouçando — como nós — entre a vida e a morte ; á esquerda o Monte — árida rocha a pique, com o seu aspecto de fortaleza; á direita a praia e o mar ...

Bellas Artes, 15, Costa de Caparica, A. Roque Gameiro, Paulo Emílio Guedes & Saraiva
(cf. original de 1897 ref. em Branco e Negro, 17 de maio de 1897).
Imagem: Delcampe

Nada mais triste! Um dia, em que lá fiquei, ouvindo, ao sol posto, o toque das Ave-Marias, deu em mim tal melancolia, que desatei a chorar!

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Não era ameno o sitio, tampouco o foi, em tempos, a fama dos seus moradores. 

— Anda fugido na Costa — era uma phrase corrente na boca do povo, quando se falava de algum criminoso façanhudo, que desapparecera de Lisboa.

Transposto o Tejo, ladrões e assassinos alli se acoitavam e escondiam nas companhas dos barcos de pesca. Assim escapavam no mar aos quadrilheiros de Lisboa, quando lá iam perseguil-os. Uma visita da justiça á Costa — quando a policia estava longe de ser o que é hoje — era uma expedição arriscada, e quasi sempre inútil.

A civilização já lá chegou, e, se não mudou a natureza, mudaram os costumes. Ainda assim não podemos dizer que reina alli sempre uma paz octaviana. Um dia, logo depois de saírem de lá os nossos amigos, um homem, chamado Damião, foi esfaqueado.

A casa da sr.a Maria do Adrião — o nosso hotel — era respeitada, e nós, saindo de lá, não faziamos detença na povoação.



Retrato do poeta Raimundo Bulhão Pato,
Miguel Angelo Lupi, C. 1880
Imagem: ComJeitoeArte


Os pescadores, pobre gente, quando ha peixe andam na sua faina; quando elle falta vêem-se á porta das choças, ou na praia, olhando, tristes e sombrios, para o mar alto. E d'alli que lhes vem a ventura e a desgraça. Aquella vida, que para nós tem uma grande poesia, traz-lhes sempre deante dos olhos duas sombras negras — a fome em terra, quando escasseia o peixe, e a morte, quando os surprehende o vendaval !


Costa de Caparica, Alberto Carlos Lima, pescadores puxando uma embarcação para terra, década de 1900.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Sérios e concentrados, mantinham um discreto silencio, quando appareciam onde nós estávamos. Com os rostos semi-occultos, os gabões caídos em largas pregas, tinham um quer que de sombras, movendo-se lentamente naquelle fúnebre scenario.

A nota alegre, única, mas esta vivíssima, eram as creanças. Essas, sim, que vinham sempre visitar-nos. Nós, para elles, éramos a novidade — com os nossos trajos, armas, e perdigueiros. Elles — o bando buliçoso, saltão e gárrulo — corriam para nós, cheios de pittoresco e de vida. Uns de gabõesitos pardos outros de camisolas riscadas, brancas, azues, vermelhas; alguns semi-nús, mostrando pelos rasgões da fato a pelle trigueira, com os seus tons fulvos ; todos descalços; os cabellos, pretos, loiros, arruivados, crespos e revoltos; queimados os rostinhos pelo sol, e crestados pelo nordeste.

Costa de Caparica, Alberto Carlos Lima, colégio do Menino Jesus e casas típicas de pescadores, década de 1900.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Algum, mais atrevido, colleava, lenta e sorrateiramente, até á casa do jantar; os outros miravamnos de longe por entre as portas, com os olhos vivos, esperando a saída. Poderia a vista satisfazer-lhes a curiosidade, mas nós, a este prazer, puramente óptico, ajuntávamos alguma coisa mais tangível.

Os primeiros a receber os nossos dons eram os mais velhos, os que nos tinham prestado algum serviço, que elles, no acto, não se esqueciam de allegar. A esta distribuição seguia-se outra, que era geral. Atirávamos para o monte.

Aspecto do bairro piscatório da Costa da Caparica, 1938.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Tinha que ver então ! O bando precipitava-se, ávido e furioso, sobre as mealhas esparsas na arêa. Era uma confusão vivíssima de corpos ás rebatinhas, de cabecitas resfolegantes e afogueadas, de mãos aduncas, luctando, qual de baixo, qual de cima, pela posse do metal. Aqui e alli, d'entre a revolta mole, erguiam-se alguns, cheios de alegria e de poeira, mostrando orgulhosos o premio da lucta. E ella repetia-se, se um olho mais agudo descobria no chão algum cobre, que aos outros escapara.

Depois os vencedores dispersavam. Alguns, raros, paravam nos limites da povoação, levando as mãos aos barretes ; outros iam-se logo, retouçando, aos pulos, pelo areal. Mas alguns ainda nos acompanhavam. Não era o amor, nem a gratidão ...

Costa da Caparica, crianças filhas de pescadores, 1938.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Não tinham apanhado nada, e vinham lastimando-se, até que alguma alma, impaciente ou apiedada repartia com elles os últimos miúdos. Um vintém para cinco, dez réis para três ... Contas difficeis de fazer, mas que elles lá resolviam com a sua arithmetica de pequeninos.

Eram os prémios de consolação.

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Com titulos bastantes para ser procurado pelos mestres da venatoria, não os tinha eguaes este sitio para ser frequentado por senhoras. Quem alli as levava, não era a fama das amenidades do logar, éramos nós, os caçadores, auxiliados por um certo estimulo artístico, o da curiosidade do contraste — ver a povoação dos pescadores, com as suas casas de colmo, armadas sobre os barcos!

Um trecho da Africa, á vista, e a dois passos de Lisboa !

Das classes populares também alguns alli iam fazer as suas ágapes campestres. Mas essas, não raro, tinham um epilogo cómico, quando não trágico. Vinho quasi sempre, e, ás vezes, sangue. 

Casas de cal e arêa havia lá então duas ou três. Na parede exterior d'uma d'ellas lia-se uma inscripção, em grossas lettras d'almagre, commemorando que a modesta vivenda fora honrada, tal dia, por um rei nosso. Se bem me recordo, foi D. João VI. E também me mostraram o tinteiro de faiança nacional, pintalgado de amarello, vermelho e verde — tons crus — de que elle se serviu para escrever ou assignar não me lembro o que.

Casa da Coroa, da qual se dizia que hospedou D. João VI.
Imagem: Carlos Caria

Este sertão, inhospito para gente civilisada, foi, durante muitos annos, talvez pelo seu estado de natureza primitiva, um paraiso para os caçadores! Um completo mattagal, alto, denso, e espinhoso. Invernos havia, porém, abençoados, em que parecia ter-se alli aberto a arca de Noé! A caça de arribação em bandos!

Eram abibes, tarambolas, narcejas, patos, maçaricos reaes, gallinhas d'agua, borrelhos, toirões, codornizes, e depois lebres, e até gallinholas e perdizes, que desciam do monte — tudo com o seu acompanhamento de aves carniceiras, corvos, grifos e milhafres !


Quando Bulhão Pato começou a frequental-o com os seus amigos, ainda o Juncal era isto. Hoje lembra o "locus ubi Troja fuit"... Aqui foi o Juncal! ... Catado de norte a sul, de leste a oeste, dizem-me que não deita de si quatro codornizes!

Não vou lá, ha, talvez quinze annos, e no ultimo dia as minhas perdigueiras levantaram-me apenas duas!


Trafaria, Vista dos Moinhos, ed. Manuel Henriques, 08, década de 1900.
Imagem: Delcampe

Ephemeros todos os paraisos! Até os dos caçadores! (1)


(1) Zacharias d'Aça, O Tiro Civil n.° 138, domingo 15 de maio de 1898

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Tema: Bulhão Pato

Informação relacionada:
Bulhão Pato, Zacharias d'Aça, O Occidente n.° 717, 30 de novembro de 1898
O Occidente n.° 434, 11 de janeiro de 1891
Bulhão Pato, Paquita, Typographia Franco-Portugueza, 1866Bulhão Pato, Livro do Monte, georgicas, lyricas, Lisboa, Typographia da Academia, 1896
Francisco Zacharias d'Aça, Caçadas portuguezas: paizagens, figuras do campo,
Lisboa, Secção Editorial da Companhia Nacional Editora, 1898 

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