sexta-feira, 29 de novembro de 2019

A charrua entre os corvos

Há anos um pescador da Fonte da Telha a caminho da Albufeira descobriu, em certo ponto da costa, uma charrua carcomida, apontada para o mar. Encontrou-a entre as ervas do areal, cravada a fundo e de rabiça levantada, como se tivesse ido longe de mais na sua tarefa de lavrar a terra e estacasse, num grande pasmo, diante do oceano. Os maçaricos e os corvos-marinhos cobriam-na de excrementos, a brisa salgada esfarelava-lhe o corpo de ferro. 

Delcampe

À distância, o pescador em viagem julgou tratar-se de algum cadáver sobrevoado por pássaros vorazes. Mas quando se aproximou e reconheceu a charrua, olhou o mar, olhou o deserto de areia, olhou, enfim, a mata brava que se alongava por toda a costa, e perguntou a si próprio por que milagre aquele engenho de camponeses vencera a floresta e as dunas e viera morrer ali, entre os corvos do mar. 

Nem ele, nem qualquer dos pescadores das redondezas, e nem mesmo os solitários mercadores que, no verão, percorrem a Praia tocando burros carregados de peixe, ninguém tinha uma resposta para esse mistério. Passavam por lá, interrogavam-se, se é que se interrogavam, e, em conversa, diziam: «Mais adiante, em passando o arado... » ou «Para lá do arado, antes das Algaceiras ...» E essa era a forma de consagrarem um sinal, uma referência, mesmo quando essa referência, jazendo definitivamente soterrada, não passasse de um eco indecifrável. 

Em Maio de 50, meses depois de terem sido publicados os contos de «Os Caminheiros», a charrua ainda lá estava. Era simplesmente uma haste de madeira (sugada como a dos mastros ou a dos remos ao sol das praias) e um anel de ferro pendurado nela. O resto, o cabo que a mão do lavrador tinha governado e o dente de aço que rompera a terra, tudo estava sepultado pelos ventos do areal e se resumia, como disse, a um eco, memória do homem. 

Nessa ocasião - recordo-me como se fosse agora - pensei não num cadáver devolvido à terra pelas ondas, como imaginou o pescador da Fonte da Telha, mas, pior ainda, naquilo que o desprezo, a natureza ou as forças do mal roubam ao indivíduo, privando-o dos seus gestos úteis à comunidade. Pensei, explicando-me melhor, em que, nesta data (1963) e neste mundo de hoje (idade dos astronautas), a fome elementar é cada vez menos um tema de Literatura para ser unicamente objecto de resolução científica rigorosa e de estudo planificado, tal como o foi a lepra, por exemplo, que se despojou das suas mitologias do Velho Testamento logo que a medicina social lhe vibrou o golpe adequado.

Delcampe

Hoje os erotismos da fome perderam a ênfase bíblica. - nem seduzem sequer os escritores populistas - os mais exigentes, entenda-se. Os bem instalados passam por cima disso, sem remorso; falam dos romancistas da miséria como se a miséria fosse um flagelo natural que só ao futuro cabe resolver universalmente. Isto tratando-se de um mal de que se conhecem exactamente as causas, o vírus e a sua propagação, um mal bem definido e de terapêutica comprovada. 

Mas - continuei eu a discorrer, a propósito da charrua na praia - a vida primária e as desigualdades primárias existem em 1963 à face da terra. É legítimo que se ignorem? Deveremos reduzi-las à sua explicação «física» ou à responsabilidade colectiva? 

Penso que não. Penso que elas dispõem de dimensões morais, isto é, literárias, que as ampliam de significado e as não limitam à mera patologia social. A fome não é apenas um problema de sobrevivência, é uma questão de impossibilidade do exercício das capacidades do homem e do seu rendimento como tal. E nesse sentido, a charrua entre os corvos (marinhos ou não, pouco importa) apresenta-se-me como uma imagem significativa. .Não a vejo como ilustração do espírito medieval, como instrumento insólito abandonado por um camponês em território de pescadores. Nem tão pouco como último destroço da moral dos lavradores, todo temerosa de progresso e tão apegada às hierarquias divinizantes. Já não.

Alexandre O'Neill, Fernando Babo, José Cardoso Pires e Mário Cesariny em Cacilhas no dia 17 de maio de 1947
Jornal de Letras, 4 de novembro de 1998

Para mim a charrua lançada aos corvos é um exemplo figurado da amputação do homem, um testemunho de certa destruição que se exerce, não imediatamente sobre ele, criatura física, mas sobre os instrumentos que o rodeiam, sobre os gestos e sobre as manifestações de actividade que o tornam utilizável como homem. E isso é uma outra espécie de fome, uma outra destruição.

Ao rever agora os contos do presente volume, sinto que muitas destas coisas podem vir a propósito da maioria deles. Da maioria, não de todos. 

Hemeroteca Digital

São em grande parte histórias de desocupados - não no sentido naturalista do termo, espero -, de criaturas privadas de meios de realização, num plano objectivo em que as crepuscularidades da angústia não desempenham,. mea culpa, o papel tantas vezes conveniente ao gosto preocupado dos espectadores. Se nalgumas destas páginas, no entanto, isto que digo não é evidente, compreende-se: trata-se de uma colectânea em que reuni contos de dois livros diferentes, um publicado em 1949, o outro em 1952, e que correspondem a uma concepção de narrativa para mim bem localizada e, sob alguns aspectos, distante. Por esse motivo, ao organizar este volume, ocorreu-me intitulá-lo «Visita à Oficina», o que era uma maneira de regressar, através de um punhado de histórias, a imensa experiência literária já vivida e, ao mesmo tempo, unia oportunidade de confronto e de meditação sobre o artesanato do escritor, sobre o jogo de fortuna e azar em que se lança alguém quando descreve um pouco do seu tempo. 

Jogo de azar é, pois, o palpite, o pressentimento, a sorte de intuição com que todo o narrador, bom ou mau, estabelece certas relações para definir a natureza. Mas é mais do que isso, e mais importante. No fundo, talvez os desocupados deste livro devam a uma situação de acaso (exterior a eles, a sua vontade) as formas de existência que lhes são impostas... Se formos a ver bem, o facto é tanto mais verdadeiro quanto é certo que o indivíduo destituído de autoridade está condenado a tropeçar a cada passo nos caprichos daqueles que a detêm como exclusivo.

Fonte da Telha.
Delcampe

Afãs isto levar-me-ia certamente ao ponto inicial: à charrua entre os corvos, aos desocupados, que são criaturas sem autoridade cívica, etc., etc., etc." (1)


(1) José Cardoso Pires, Jogos de Azar, 6.ª edição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1990

Mais informação:
Hermeroteca Digital: José Cardoso Pires, Jogos de azar

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