quinta-feira, 17 de junho de 2021

Prosas do Monte

Logo com o romper do dia appareceu o nevoeiro. Em o mar reclamando, não nos bancos da Barra; mas nas arribas da Costa, com ruido constante, e que se assemelha ao parque d'artilheria rodando a distancia, é esperar pela "resposta" do nordeste. Não falha.

Retrato de Bulhão Pato por Columbano (detalhe), 1908.
MatrizNet

O vento parara completamente, e desde o nascer do sol o nevoeiro era cada vez mais denso. ]á 11 da manhã e não se via a dois metros.

Este anno as arvores principiaram a abrir muito cedo. Os paizagistas deviam apanhar o campo no primeiro balbuciar da primavera: tem o poder supremo e sobrehumano do crepusculo da adolescencia na mulher!

As cerejeiras mescladas de flor e de folhas, jogando. com os braços para o ar, tomam, algumas, a fórma de uma copa festonada e enorme. Variados, graciosos, encantadores quadrinhos! Os passaros não dobram o canto por agora; mas as cotovias matinaes, nas leiras de trigo temporão, andam aos pares. As andorinhas ha muito que se beijam voando, e o rouxinol, não tarda, no fechado dor pomares, a reclamar a amante.

O nordeste, annunciado pela bateria remota, começa correr. De subito rasga-se o véo sombrio do nevoeiro.

Trigaes das varzeas, silveiras dos vallados, vinhedos das encostas, alguns olmeiros aqui e além, tudo envolto por neblina transparente ern jubilo exuberante, parece pular da terra, como querendo fundir-se com o sol deslumbrador, que faisca na curva anil do firmamento purissimo!

Rompe a orchestra do tempo, — desespero dos contrapontistas — com as mesmas notas, as mesmas combinações, os mesmos motivos, e sempre nova, variada, original!

Não são as montanhas, as florestas, os valles, as cataratas, os promontorios, o mar com as tormentas!...

Retrato de Bulhão Pato por Columbano, 1908.
MatrizNet

São os assomos da primavera n'uma paizagem levemente ondeada; mas que imprevistos contrastes de harmonias, de luz e de côr! — As violetas, muradas, suspiram pela paixão sem macula; as rosas, provocadoras, mordem com os espinhos do ciume; os balsamos da aragem precipitam a circulação; a laranjeira, occultando na castidade branca das suas grinaldas o veneno do amor, seduz a virgem, a quem o bosque promete segredo e sombras; as papoulas, ebrias erguem a taça incendiada, convidando a lubricos combates; e a melros dissimulam, no madrigal improvisado, a satyra perfida!

O campanario do Monte repicou a casamento. Dois carros descobertos rodam em frente da minha janella. Regressam do adro da egreja. No trem, que segue adeante, a noiva, gesticulando alvoroçada, fala com o noivo, rapagão fero, mas acanhado.

Petulantes, como rebentam das cerejeiras os botões florentes, saltam da bocca vermelha e sensual da rapariga os primeiros beijos das nupcias.

Março 1897 (1)


(1) Bulhão Pato, Branco e Negro, semanário ilustrado n.° 91, dezembro 1897

Tema:
Bulhão Pato

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