segunda-feira, 30 de abril de 2018

As lágrimas das coisas!

Deixei na cidade as satyras,
Com as brumas da invernia:
Venho ao campo — um dia esplendido!
— E eu alegre, como o dia!

Lisboa vista da margem sul, Johann Heinrich Luttringshausen (1783-1857).
Imagem: arcadja

Tardou em chegar abril;
Mas agora é que deveras
Vem mais robusto e gentil
Do que n'outras primaveras.

Rebenta na encosta os pâmpanos;
Enflora o pomar nas hortas.
Cheio o regaço de dadivas,
Já bate a todas as portas!

É tal a forca de luz
E de vigor, que elle traz,
Que, ao ver-lhe a face, eu suppuz
Que estava feito um rapaz!

Lisboa vista do Porto Brandão, James Holland, 1837, 1838 ou 1847.
Imagem: Museu de Lisboa

Em volta do ninho os pássaros,
Palpitando de desejos;
E as rosas, abrindo as túnicas,
Aos cravos atiram beijos!


Quando até as próprias rosas
Beijam cravos a tremer,
Quantas coisas mysteriosas
No coração da mulher!...

Este bello sol deslumbra-me,
E arrebata-me ao passado...
Era assim!... Um dia fulgido!
Céo azul, em flor o prado!

Vista panorâmica de Lisboa ocidental, Maria Guilhermina Silva Reis.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Um vestidito singello,
Ao peito um cravo vermelho,
Posto em tranças o cabello;
E sem consultar o espelho,

Vinha commigo. Julgando-me
Moço de rara sapiência,
Ouvia, exultando, as syntheses,
Próprias da minha sciencia...

Cantavam ao desafio,
Nas pedras batendo as roupas,
As lavadeiras no rio,
E as toutinegras nas choupas.

Costa da Caparica,  ed. Passaporte, 7, década de 1950.
Imagem: Delcampe

Rosada, fresca, alegríssima, —
Encantadora creança, —
Raiavam-lhe os olhos límpidos,
E verdes como a esperança!

Um mal-me-quer do balsedo
Tomou nas mãos pequeninas,
E foi dizendo, em segredo,
As palavras sybillinas.

— Muito, muito! — exclamou, trémula,
E pela primeira vez,
Demudou-lhe o rosto, súbita,
Uma grande pallidez!

Esperando o peixe, Adolfo Rodrigues, 1893.
Imagem: arquipélagos

Ao despedir-se de mim,
N'um vivo aperto de mão
Disse tudo quanto emfim
Diz, na mudez, a paixão!

E cahiu d'aquellas pálpebras
Uma pérola do amor,
Como cae o orvalho rutilo
Da aurora sobre uma flor!

Ha muito que a rosa agreste,
D'olhos verdes como a esp'rança,
Dorme á sombra d'um cypreste. . .
Desventurada creanca!

Miradouro do Convento dos Capuchos, ed. Passaporte, 57, 1966
Imagem: Delcampe

Ó sol d'abril, tu cegaste-me!
Debalde acudo ao passado,
Que não volta a flor do espirito,
Como volta a flor do prado!

Monte de Caparica, abril 20, 1888. (1)


(1) Bulhão Pato, Sunt lacrimae rerum!, Hoje, sátiras, canções e idyllios, Lisboa, 1888

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