sábado, 16 de julho de 2016

Ercília Costa (1902-1985)

No inicio do nosso século havia um pescador caparicano que nas horas de ócio dedilhava a guitarra. Tocava e desabafava, inconformado com aquilo que, na sua singeleza, chamava triste sina...

A Praia do Sol, As primitivas barracas dos pescadores, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 111
Imagem: Delcampe

Havia constituído lar, e nele nasceram três meninas. Uma, a mais viva, de nome Ercília, muito cedo brincou com a guitarra e cantarolou, numa inocente imitação do progenitor.

Aos quatro anos, acompanhava a mãe quando esta viajava até Lisboa, e durante a travessia do Tejo, nos vapores da carreira, lá os passageiros achavam graça às cantigas da pequenita, presenteando-a com moedas de cobre. Foram os primeiros aplausos e os primeiros ganhos da futura actriz-cantora.


O vapor Victória.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Mais mulherzinha, veio residir em Lisboa e aprendeu o ofício de costureira de alfaiate. E tudo parecia ser mais uma rica vocação abortada pelo condicionalismo do dia-a-dia.

Ercília Botelho Farinha Salgueiro nasceu na Costa de Caparica a 3 de Agosto de 1902. Filha de Manuel Farinha e de D. Virgínia Maria Botelho. O apelido de Salgueiro adoptou-o apos o casamento com o funcionário bancário José Salgueiro, falecido em 27 de Junho de 1977.

Mas a vocação da jovem Ercília não se iria perder, e o interregno acabaria no dia em que, estando a trabalhar no oficio, alguém (ouvindo-a cantar...) lhe pergunta se queria tomar parte num coro de alunos do Conservatório Nacional, ali perto à Rua dos Caetanos. Tratava-se do Auto do Fim do Dia, prova de exame que teria lugar dali a dias no Teatro de S. Carlos.

O mestre da oficina dispensou-a por umas horas, e a bela voz de Ercília logo foi notada no improvisado coro. Dirigiam os ensaios o Maestro Hermínio do Nascimento, na parte musical, e Mestre António Pinheiro, quanto ao poema. E todos foram unânimes em classificar de esplêndida aquela voz surpreendida numa oficina de alfaiate.

Várias circunstâncias impediram a incipiente cantora de se cultivar. Rapariga pobre, nunca poderia empatar sete anos nos estudos. Mas uma nova oportunidade iria surgir pouco depois e, em 1928, estimulada pelos actores Mario Campos e Eugénio Salvador teste ao tempo doublé de futebolista do 1.° team do Sport Lisboa e Benfica, começou a cantar o fado e outras canções.

Ercilia, que, entretanto, se baptizara como artista, unindo o primeiro nome ao da sua terra natal, passou a ser anunciada e conhecida por Ercília Costa.

Ercília Costa.
Imagem: du bleu dans mes nuages

Primeiro cantou fados no Olimpia, de Lisboa. Ferro de Engomar, em Benfica. e nos conhecidos retiros da Capital Café Luso, Solar da Alegria e Retiro da Severa. Dois meses após a sua estreia, gravou discos para a Brunswich e Odéon e, terminada essa tarefa, estreou-se no teatro, contratada pelo empresário José Loureiro.

Entretanto, recebia o cartão de artista de variedades. No Trindade, estreou-se na revista A Cigarra e a Formiga. Tempos depois, na Feira da Luz, no Apolo; no Variedades, com Satanela, Raul de Carvalho e Assis Pacheco no Canto da Cigarra; no Coliseu dos Recreios, na História do Fado; no Avenida, no Fogo-de-Vistas; no Maria Vitória, no Rei dos Fadistas: de novo no Coliseu, no Fim do Mundo e Última Maravilha.


Em 1931, visitou as Ilhas, tendo representado em todos os teatros da Madeira e Açores. Depois ici percorrendo todos os palcos do Minho ao Algarve. Em 1934, esteve presente em Vigo, nas festas luso-galaicas, aquando da inauguração da estátua a Camões: e segue logo para Madrid, onde actua em teatros e grava um disco no mesmo dia e na mesma firma em que gravava o argentino Carlos Gardel.

Ercilia é do tempo em que o artista actuava sem o auxílio do microfone. Então era exigido ao cantor, para lá do valor e da qualidade da peça a executar, um domínio absoluto sobre o auditório.

A forte personalidade do cantor tornava-se um factor de extrema importância. Ercilia Costa tinha esta última qualidade em elevado grau, ao ponto de, no enorme Coliseu dos Recreios, com a lotação esgotada (6000 espectadores), quando ela cantava, não se ouvia sequer uma mosca...

Um aspecto da formidável enchente do Coliseu dos Recreios, em cujo palco foi representada a revista O Fim do Mundo, com a participação de Ercília Costa e Leonor d'Eça, 1934.Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

E, como a sua concentração, nesses momentos de transe, a levava, mimicamente, a pôr as mãos como numa prece, alguém, impressionado, disse um dia que ela parecia uma santa a cantar o fado...

Diante do microfone, Ercília foi uma pioneira: no Posto Radiofónico CT1AA, de Abílio Nunes dos Santos, dos Grandes Armazéns do Chiado, foi o primeiro artista a actuar para ser ouvido no estrangeiro.

A nossa biografada, para lá do valor das orquestras que com ela colaboraram em inúmeros espectáculos e audições, pede que não nos esqueçamos do espantoso Armandinho, cuja guitarra por si dedilhada se transformava num coração humano com vida própria.


Quando do seu funeral, Ercília pediu licença à viúva do grande guitarrista para lhe beijar as mãos.

Continuando a citar os vários países e lugares onde a actriz-cantora actuou, temos que: em 1936, foi pela primeira vez ao Brasil, integrada na Companhia de Revista Adelina Abranches-Eva Stachino; por mais duas vezes visitou este país, em 1938 e 1945; nestas digressões percorreu de lés a lés a grande nação sul-americana.

Em 1937, esteve na Exposição Universal de Paris, actuando numa récita de gala no Teatro Campos Elisios, cantando ainda na emissora Rádio-Parisiènne. Em 1939, cantou na Exposição Mundial de Nova Iorque, demorando-se um ano na América do Norte, onde visitou 26 estados, indo até à Califórnia. Voltou aos Estados Unidos oito anos depois. Bing Crosby, Gary Cooper, Leo Carrillo e outros astros de Hollywood foram seus admiradores, presenteando-a com elogiosos autógrafos nas suas fotografias.

Ercilia Costa foi, no seu tempo, o artista português que gravou mais discos, sendo ainda (e isto constitui uma curiosa revelação...) a autora de várias músicas dos seus fados.


Interpretou dois filmes: Amor de Mãe, para a Aguia Filme, e Madragoa, de Perdigão Queiroga.


(1) Correia, Romeu, Homens e Mulheres vinculados às terras de Almada, (nas Artes, nas Letras e nas Ciências), Almada, Câmara Municipal de Almada, 1978, 316 págs.

Informação relacionada:
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