quarta-feira, 4 de março de 2020

Sibylla Blei, Billy Lieben

Sibylla Blei é quase desconhecida. Pequena maravilha — ao mesmo tempo que foi a filha de um bem conhecido escritor a sua carreira com actriz foi demasiado curta para deixar traços maiores. O biógrafo pode recordar que ela foi a tradutora de uma novela (erradamente) atribuida a Oscar Wilde. Catálogos de bibliotecas e a Internet referem um catálogo de livros, que na maior parte foram propriedade do pai, Franz Blei, doados à Biblioteca Nacional de Portugal por Sibylla Blei e Sarita Halpern.

Sibylla Blei fotografada por Trude Fleischmann c. 1924.
MutualArt

M. A. Pinto Correia [cf. Ein grosses Bestiarium der Weltliteratur. Franz Bleis Büchersammlung in Lissabon. In: Franz Blei: Mittler der Literaturen. Hrsg. von Dietrich Harth. Hamburg: EVA 1997, 213–222] contribuiu com um esboço biográfico de ambas as mulheres para essa bibliografia. 

Mais recentemente, Sibylla Blei foi interpretada como um tipo de mulher lésbica emancipada [...] (1)

Sibylla Blei fotografada por Trude Fleischmann c. 1924.
MutualArt

Fotografias antigas: Billy sempre na proximidade do mar, recostada na amurada de um navio e quase tombando sobre as ondas, ou destacando-se numa paisagem mediterrânica de sol e palmeiras; Billy no círculo de amigos, como ela emigrados em Espanha, ao encontro de uma trupe de saltimbancos, cuidando de animais ou ainda banhando-se na Costa da Caparica.

Billy era assim, criatura do ar livre, do "natural e elementar", como já o pai, Franz Blei, a retratava numa das raras referências, a mais longa, que lhe faz na sua autobiografia Erzühlung eines Lebens: 

"Entregava-se-lhe [ao mar], quase seria levado a dizer, como uma noiva, pois as águas, o nelas mergulhar, o cortá-las com as velas, o arpoar os seus habitantes, qual caçadora com o tridente, foi desde sempre a grande predilecção da sua vida, ela que estava mais próxima de tudo o que é natural e elementar do que do humano e do circunscrito de um pequeno redil."

Sibylla Blei por Trude Fleischmann c. 1920-1925.
Theatermuseum, Wien

E, nestas palavras com que Franz Blei relata o breve episódio do desaparecimento da filha durante a viagem de barco que a família faz para os Estados Unidos em 1897, julgamos ver já traçadas algumas das linhas da personalidade de Billy — a irrequitude, a vitalidade, mas, sobretudo, o inconformismo, essa recusa total de se submeter a normas, um comprazimento no quebrar de barreiras, afinal o que de mais nítido nos fica dos poucos dados biográficos que dela possuímos.

Filha do escritor Franz Blei, Sibylle Blei nasceu em Viena, a 14 de Março de 1897, e faleceu em Portugal, na Costa da Caparica, em data que não conseguimos determinar com exactidão, possivelmente nos fins dos anos sessenta [14 de março de 1962 ...]

O casamento com Billy durou poucos meses, mas a ruptura nunca foi completa. Ernst von Lieben seguiu-a sempre à distância, mesmo ao longo das etapas do exílio: primeiro, Palma de Maiorca, e depois, já durante a guerra, Costa da Caparica, onde algumas vezes a visitou [...]

Sibylla Blei por Trude Fleischmann, 1924.
artnet

Em princípios de 1939, Billy e Sarita fundam na Costa da Caparica uma pequena empresa de fabrico de cosméticos [...] (2)

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3 de março, 1941

Dear Hermann!

Fui interrompida, há sempre trabalho, já que sou carpinteiro, pedreiro, canalizador, serralheiro, embalador, jardineiro, tudo na mesma pessoa. Pelo meio, para não esquecer, cozinho, e quando as minhas sandálias estão estragadas, arranjo-as ou faço novas.

Maria Eva Sibylla Blei.
geni

E esta casa come o tempo como uma ténia, pois há sempre alguma coisa para reparar, está sempre algo partido. 

O estuque está a cair das paredes, as portas e os caixilhos das janelas estão torcidos porque foram feitos com madeira verde, os vidros caem das janelas porque a massa é da pior qualidade, a chuva entra pelos caixilhos e paredes, os fios elétricos caem das paredes porque os pregos não se fixam nas paredes, é divertido. Digo-te! Tudo é feito apenas para mostrar, e tudo, tudo, tudo é lixo!

Tudo com grandes pretensões — e nada por detrás, mas realmente nada! — Agora haviam três dias de primavera, necessários para secar a casa. A proprietária não se deixa ver, mas vêem-se de sobremaneira as rachaduras na casa. As pessoas dizem que não devemos ficar na casa, é perigoso, mas ninguém nos aconselha "sobre o que" devemos mudar e, portanto, levamos isso de ânimo leve e confiamos na nossa boa sorte como até agora. Principalmente porque não temos opção.

O carnaval acabou, o bacalhau está enterrado, e os trabalhadores andam de ressaca e de mau humor e não sabem muito bem o que fazer. Muitos sonhos e esperanças não deram em nada (a esperança, principalmente, de encontrar um noivo), os corações estão desfeitos porque o noivo dançou com outra garota e a triste monotonia impera. As tentativas interrompidas são retomadas, e agora o desejo mais urgente é que em breve seja primavera e o tempo aqueça novamente.

Os dois bebês nascidos fora do casamento estão vivos, e as mães, com 16 anos de idade, também, os velhos "progenitores" foram condenados a multas pesadas. Uma das raparigas deixou-se persuadir por amor, a outra pela promessa de uma bicicleta, a qual, afinal, não conseguiu. 

Em suma, a vida continua como de costume. Um dos sedutores é um camponês da nossa vizinhança. Tem uma família numerosa e ontem, mais uma vez, casou uma de suas filhas. Ele tem uma esposa ainda relativamente jovem, robusta e saudável, que foi motivo de uma conversa entre duas camponesas:

"Que tenha escolhido uma rapariga tão magricela e "verde", entre todas. Ela não tem nada, nem à frente nem atrás, ainda não tem peitos, nem nada especialmente porque ele tem uma esposa com boa apresentação, com peitos (gesto redondo) isso não consigo compreender! " [...]

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anterior a maio, 1941

Billy Lieben

Quinta San Antonio
Costa Caparica
Portugal

Dear Hermann!

[...] agora não é tempo para novas aventuras, e não poderíamos fazer isso a esse homem [associarem-se na gestão de um laboratório], porque quando Hitler chegar, seremos retiradas e ele ficará só! Falta-lhe o conhecimento, quer entregá-lo a uma pessoa confiável ou vender tudo como está.

Sibylla Blei por Trude Fleischmann em 1921.
Booklooker

Discutimos o assunto muito abertamente com ele porque não queremos apressá-lo nem desapontar sobre nossa situação "política". Ele compreendeu e quer esperar mais um mês (na verdade é já o terceiro mês!).

Mas, num mês, Hitler ainda não estará derrotado... Se fôssemos porcos, ficaríamos caladas e agarraríamos a oportunidade — com ambas as mãos: mas não podemos.

E, portanto, temos que renunciar a essa grande oportunidade, muitas vezes sonhada! Porque sempre sonhámos encontrar alguém como ele, e agora acontece que esta pessoa desconhecida se aproxima de nós, até mesmo com um laboratório grande e perfeitamente equipado, etc. — não conseguiriamos pensar em nada mais agradável e melhor — sim, mas não funciona.

Sim, poderíamos casar com portugueses, mas isso também custaria mais dinheiro qo que aquele que temos, e também não seria suficiente para protecção. Em França também prendem franceses [...]

E agora, finalmente, os dados desta simbiose, para o teu álbum:

Sarita: Sarah Halpern, nascida em 3 de setembro de 88 [1898?] em Bolszowce (Pole, passaporte Polaco) e Billy: Sibylla Lieben-Blei, nascida em Zurique em 27 de março de 1897 (ex-austríaca, passaporte austríaco)
Competências: cosmeticistas, produtoras de produtos cosméticos de alta qualidade (batons, loções, leites hidratantes, loção para o cabelo etc. etc. cremes faciais para vários tipos de pele e muitos itens similares)
Carácter: Pessoas honestas, fiáveis ​​e corajosas


Yours ever,
Billy

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Lisboa, 28 de maio, 1941

Dear Hermann,

[...] O peso leve de um espectro afundou-se sobre mim ao sair do comboio. Loge [Franz Blei, pai de Sibylla] — não, um vagabundo barbudo — não, um velho hebreu — não, o cadáver vivo de Tolstoi — não, era Loge, nos meus braços. Imediatamente num carro e para casa, para o meu lugar aqui, do qual não se mexeu desde então.

Costa da Caparica, Vista geral da Quinta de Santo António, ed. desc., década de 1940.
Delcampe

A primeira coisa foi trazer o barbeiro da aldeia dois homens vieram, e quase se podia dizer que fora necessário, porque poderia ter sido demasiado para uma só pessoa barba e cabelo etc. (tirei uma foto antes! Como lembrança!) Nos próximos dias, fotografarei o "depois".

O alfaiate também estave aqui. Em suma, ele estava em trapos, e eu tive que o vestir completamente de novo, e agora ele parece-se com um ser humano e muito melhor.


Ele estava completamente malnutrido. O médico disse que se ele tivesse sofrido de algum problema orgânico e não esteve naturalmente saudável - ele nunca teria conseguido. Ele come e dorme e come, dorme e felizmente, tem paciência consigo mesmo, assim como nós com ele [...] toma bem conta de si próprio e em pouco tempo estará na sua anterior forma novamente.

Se alguém me pudesse dar a garantia de que Hitler não viria, mantê-lo-ia aqui. Se alguém pudesse, pelo menos, garantir que esse H. não chegaria até o final do outono, eu solicitaria uma extensão do seu visto para poder alimentá-lo por mais tempo e ele poderia descansar mais — mas não ouso.


Não devo, nem irei, expô-lo a outro choque! Porque, para além de todas as outras coisas que nos podem acontecer aqui, a fome que irá irromper neste país — um país tão pobre (sem as suas colônias) — seria pior do que em França [...]

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8 de agosto, 1941

Billy Lieben
Quinta San Antonio
Costa Caparica
Portugal

Dear Hermann!

[...] não acredito num ideal de qualquer maneira, mas calculo que possa ser "relativamente" melhor.

Costa da Caparica, Quinta de Santo António e Mata, ed. desc., década de 1940.
Delcampe

Recentemente, fui relembrada desses esforços por um incêndio. Por causa da estupidez de uma mulher adulta, houve um incêndio numa pastagem seca frente à casa, que se espalhou rapidamente devido ao vento.

Esta pastagem é um lugar de vários quilômetros quadrados, com algumas casas espalhadas. Nós e alguns de nossos trabalhadores partimos logo com água e regadores. Foi uma corrida infernal, porque o fogo saltava repetidamente sobre as cinturas de água e em lugares diferentes, e eramos poucas mãos e mal podíamos correr suficientemente rápido.
A "originadora" e algumas outras pessoas estavam atrás dos muros do jardim como espectadores interessados​​! Todos os gritos e insultos foram inúteis, e tivemos que gerir sem ajuda — finalmente conseguimos!

Billy Lieben, Daughter of Franz Blei, Portugal, 1940.
Hermann Broch Collection

Ach, Hermann, a revolução tem que começar com as crianças! (Hitler compreendeu isso bem!...) [...] (3)


(1) Hartmut  Walravens, S ibylle Blei (1897-1962) an independent woman
(2) M. A. Pinto Correia, Uma biblioteca reencontrada, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1988
(3) Hartmut  Walravens, Idem

Mais informação:
Sybilla Blei por Alexandre Flores (I)
Sybilla Blei por Alexandre Flores (II)

Informação relacionada:
Diário de Maria Blei - Tagebuch für Tochter Billy
Doação Sibylle Blei - Sara Halpern, catálogo de 1988
Doação Sibylle Blei - Sara Halpern, catálogo de 2011

Leitura relacionada:
Wien Geschichte Wiki: Sibylla Blei
Billys Diariumescape: "Glûcksritterinnen" Billy und Sarita
Hermann Broch Collection

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