[VERSOS]
Classificações arbitrarias da critica . — Alfredo de Vigny e a poesia loura . - Macias e Bernardim Ribeiro e o verdadeiro sentimento poetico da peninsula preludiado pelos arabes e trovadores provençaes . — Bulhão Pato representante d ' esta familia , como Thomaz Ribeiro e João de Lemos . Analogias nas suas composições . - A convalecenle no nulono , Helena , Visão do baile . - O espirito inquieto da época influindo no talento do poeta . - A Lelia . - Retorno ás primitivas e nativas inspirações .
Bulhão Pato (1828-1912) (insp. Andy Warhol, Ten Lizes, 1963) |
A critica tambem tem as suas aberrações e as suas sympathias , e em o numero d ' aquellas deve de certo entrar a facilidade , com que ella appellidou a poesia de Bulhão Pato poesia loura . Se , á maneira do que Sainte - Beuve escreveu , tratando de Alfredo de Vigny , desejam exprimir na phrase poesia lnura a poesia pura , enthusiasta , candida , a poesia ingenua e de expansivos e singelos affectos , talvez que o epitheto não seja de todo descabido no poetar do sincero e apaixonado cantor ; mas agora , se poesia loura querem que seja a poesia de indole buliçosa , doudejante , infantil , tra vessa , embora de simples e descuidosos devaneios , n ' esse caso a qualificação não é de todo verdadeira , porque o au etor da Convalescente no oulomno , da Helena , da Visão do baile ; e de outros tantos poemetos inspirados pelo amor e pela saudade , é um poeta intimo , affectuoso , melancholico , elegiaco até , e cuja candura de alma desaffoga em ardentes e suaves estrophes de sentimento lyrico .
Nem tão pouco me parece completa , e ainda menos aproximada a similhança dos instinctos poeticos de Bulhão Pato com o genero de talento de Alfredo de Musset; ha evidente differença nas inspirações que mais habitualmente inflammam o estro dos dois cantores, e de certo maior differença nos caminhos que seguem, nos aspectos naturaes com que sym- pathisam, e nos affectos que lhes accendem o coração e a phantasia.
Nada mais difficil do que fazer classificações, e todavia, a critica abalança-se muitas vezes a este arbitrio, separando, analysando e qualificando o talento de qualquer escriptor por especies e familias, como o podera fazer qualquer botanico, tratando-se de familias de plantas. Disto segue-se mais de um Linneu ter naufragado no empenho de similhantes divisões scientificas, por que realmente ha grande distancia entre por uma etiqueta sobre este arbusto e aquella flor, ou collocal-a sobre um poeta ou um prosador.
Que, no nosso caso, a analyse e a divisão estão feitas. O talento de Alfredo de Musset apresenta um mixto de Byron e Sterne, em quanto que Bulhão Pato pertence á sentimental e melancholica estirpe de almas apaixonadas, que em França tem por irmãos mad. de Valmore e mad. Tastu, e que entre nós se apresenta como a expressão da verdadeira indole da poesia peninsular.
E se não fosse a anciã, que sempre houve entre nós, e muito mais nestes nossos tempos de faceis e desejadas aclimações estrangeiras, de ir procurar fora aproximações d"estas, como se este baptismo estranho se tornasse indispensavel á consagração dos nos sos engenhos, se não fosse esta ancia, repetimos, facil seria encontrar, mesmo no parnaso portuguez, os congenitos e os illustres ascendentes da linhagem poetica de Bulhão Pato.
Analysando-lhe e seguindo com a vista a veia poetica, que ora se derrama em tranquillos e crystalinos meandros, por entre balseiras perfumadas, que, attrahidas pelo suavissimo sussurro do gracioso arroio, vem remirar-se na corrente e beijar-lhe as aguas; ora correndo mais apressada e espumosa se esconde em grutas, onde o amor depositára seus mysterios; ora volvendo atraz e enredando-se na selva, de para com uma gentil serrana, e ahi se demora em limpidos rodeios, como se tão seductor aspecto lhe immobilisara o nativo impulso; analysando e seguindo com os olhos todos estes caprichosos gyros, quem não comprehende que a alma do poeta se anima de todos os sentimentos que o contacto da formosura inflamma , e os diversos aspectos da natureza idealisam , e que daqui sảe aquelle composto de lyrismo suave e affectuoso , que umas vezes toma as formas bucolicas , outras arde nos impelos eroticos , outras emfim pro cura os tons meigos e penetrantes da elegia , composto sym pathico e mavioso de que o nosso desditoso Macias é já o precursor , ainda que mal definido , e Bernardim Ribeiro a nossa mais perfeita e gloriosa personificação ? !
Quem não comprehende esta indole e este parentesco ? !
E do poeta das Saudades que descende em linha recta o auctor da Helena . Até ha incontestaveis pontos de analogia entre muitos dos sentimentos , inspirações e até entre a pro pria concepção poetica dos dois trovadores . E trovador chamarei a Bulbão Pato , porque elle , como João de Lemos , e como Thomaz Ribeiro , e talvez mais do que o primeiro , e tanto como o segundo , significa um dos naturalissimos filhos d ' esta familia peninsular .
Na sua estréa o mostrou elle logo , na Revista Universal . Foi justamente a ingenuidade , o gracioso desalinho d ' aquella musa que , para se mostrar , nem procurava as pompas das metaphoras de Victor Hugo , nem os embevecimentos contemplativos de Lamartine , attrahiu a attenção e sympathia de todos .
Quando a maior parte dos nossos mancebos corriam azafamados , a jurar bandeiras nas hostes gloriosas dos grandes mestres francezes , Bulhão Palo parecia só querer evocar do primeiro e mais nativo periodo da nossa poesia aquella singeleza , aquella candura de affectos , aquella profunda e dolorida saudade , que os cantores provençaes nos trouxeram , e que os poetas arabes nos deixaram e que ficou sendo a manifestação da nossa in dole poetica .
É este o caracter da poesia peninsular , e ninguem , como Bulhão Pato , a não ser o auctor do D . Jayme , a sente e revela melhor . Nos mesmos versos em que parece affastar - se um pouco da natureza dos assumptos mais predilectos do alaude antigo , n ' esses mesmos respira a simplicidade , os affectos tranquillos , o tom da suave e intima tristeza , que são o seu caracteristico . Na Folha desbotada diz , por exemplo o poeta :
... É esta na existencia
A tua estrella de amor !
De amor puro , intenso , ardente ,
Mas que , occulto eternamente ,
No meu peito ficará !
Que, no infortunio nascido,
Só conimigo tem vivido,
E commigo morrerá.
Não será esta a ingenuidade, o affeclo tocante e singelo, a mesma ausencia de artificios de estylo dos trovadores?!. Até as repetições do mesmo pensamento no trocadilho final, uma das suas formulas mais usadas e caracteristicas.
E n'esta estrophe da poesia que o auctor intitula voltas, não encontraremos nós da mesma sorte a propria maneira bucolica de Bernardim Ribeiro, a ponto de nos parecer estar lendo (á parte a differença do progresso litterario das duas edades) algumas das eglogas do auctor da Menina e Moça?
Agora entre as outras flores
Correm uns certos rumores ...
Quaes são, não sei; mas ouvi
Que as mais bellas da campina
(Por quem és tão invejada),
Quando hoje chamam por ti,
Dizem — rosa namorada,
E não — rosa purpurina.
N'estes versos ha a graça do idyllio junto ao perfume suave da egloga: è Rodrigues Lobo e Bernardes ao mesmo tempo.
Mas quem me vir tão escrupuloso a inquirir assim a origem e progenie poetica de Bulhão Pato, talvez presuma que elle faz consistir seus titulos de fidalguia litteraria em ser perfilhado n'esta ou n'aquella eschola, e que eu por lison jear a vaidade do poeta, a mais feminil e meticolosa de to das as vaidades, me dei a esta tarefa de investigação de linhagens, desentranhando do cadoz dos pergaminhos da ar- cheologia litteraria os seus attestados de filiação. Pois se cuidam isto, cuidam mal.
Bulhão Pato nunca pensou em escholas poeticas, e é justamente d'esta isenção de pensamentos que lhe resulta a liberdade que desde os primeiros annos inculcara a individualidade do seu engenho. Bulhão Pato canta como o rouxinol trina, como a rola geme, como a andorinha pipilla, sem outra mira. nem intuito senão o desa bafo dos impetos que lhe agitam a alma, sem outro auxilio mais do que a nota espontanea e natural.
É um poeta intuitivo, affectuoso e expansivo, e tão facil em derramar la grimas e mover-se a todos os transportes, tão debatida e envergado pelos ventos da paixão , tão inspirado pelos abalos intimos , tão estranho a escholas e artificios da arte , que lendo - o , e , ainda mais , ouvindo - o recitar os seus proprios versos com a vehemencia e admiravel naturalidade com que elle os recita , torna - se impossivel não considerar a poesia como independente de todo o fim convencional , e deixar de ver n ' ella o simples dom do poeta chorar , compadecer ou exaltar as suas angustias , envolvendo na melodia o seu soffrimento .
E é por isto que pertence , não intencionalmente , mas pela organisação do seu ser poetico , á mesma familia de cantores naturaes e espontaneos que , em combinações rhythmicas de extrema singeleza , acolhiam por unicas inspi rações a natureza , a gloria e o amor .
Não confundam , todavia , a naturalidade d ' este talento com a ligeireza que possa resultar de uma imaginação facil , por que Bulhão Pato é d ' aquellas organisações em que seria até impossivel separar o talento da sensibilidade , e que , por um admiravel accordo moral , e grande fundo de pathetico , nunca se apresenta deveras poeta , senão quando é amante ou vivamente impressionado . A sua faculdade poetica liga - se à paixão , como o echo á vaga , e como a vaga ao lago solitario .
Ma pauvre lyre , c ' est mon âme !
Póde dizer o poeta , e n ' este verso resumirá a essencia da sua inspiração profunda e melancholica , mas ao mesmo tempo espontanea e desartificiosa . E isto explica - se . Foi no embate das contrariedades da vida , em lucta . com as paixões , embora juvenis , porém sempre ardentes e acerbas , que o coração do mancebo modelou os seus soluços , sem outro mes tre senão a voz secreta da sua dôr .
A lyra de Bulhão Pato nasceu uma lyra harmoniosa , mas uma lyra afinada pelos insinuantes accordes da angustia . E quem foi que no primeiro dedilhar lhe arrancou logo accentos tão penetrantes e doloridos ? Que ingratidão ou que infortunio lhe misturou com innocentes amores os ais carpidos da saudade que se lastima , ainda no limiar da vida , como Millevoye ou Soares de Passos ? Talvez nos seguintes versos achemos parte d ' este segredo .
Esvaeceu - se então completamente
A meus olhos o anjo da candura ,
Das commoções divinas , da virtúde ,
E achei - me só , perdido , face a face
Ante o demonio das paixões terrestres !
Dei - lhe a mão , e senti n ' um paroxismo
De desejo e de amor , fugir a vida .
Amargas desillusões enchem a vida do poeta , umas verdadeiras , outras agravadas pela ardencia da sua imaginação apaixonada . E n ' este primeiro poemeto da Lelia estão resumidos os mysterios da alma do affectuoso cantor . E nas . expansões delirantes de um affecto candido , que desabroxa este amor : « Es minha , diz o poeta :
« És minha : do céo proveio
O poder que a ti me prende ,
Mas diverso fogo accende
O teu e meu coracão :
Tu no mundo és a innocencia ;
Eu sou na terra a poesia ;
Tu dás - me a tua alegria ;
Eu dou - te a minha paixão !
Dou - te as sombras da tristeza ,
Que acertam sobre teu rosto .
Como as sombras do sol posto
Na rosa agreste do val .
Recebes n ' um meigo abraço
Meu profundo sentimento ,
E dás - me o contentamento
Do teu seio virginal . »
Mas a aurora d ' este amor depressa se annuvia de nuvens de tristeza , porque logo depois o coração , ferido da ingra tidão , exclama :
Quando a razão voltou , como o murmurio
Da fresca viração da primavera ,
O sopro perfumado de seus labios
Vinha affagar - me docemente a fronte .
Os anneis do cabello ondado e negro ,
Espargindo - se avaros procuravam
Occultar - me da vista aquelle seio .
Impaciente os affasto , devorando
Num beijo , em mil , um mundo de delicias .
Oh ! como então no peito me pulava
O coração vaidoso e triumphante !
No languido quebranto que succede
Ao febril desvario dos sentidos ,
Julia estava a meu lado : amortecida ,
Por entre a densa rama das pestanas ,
Partia a luz das languidas pupillas .
Desmaiara de amor a rosa esplendida ;
E voltava de novo aquella face
A pallidez do lyrio das campinas .
Abatida e indolente, erguera a fronte ;
Caminhámos os dois para a janeila :
Os primeiros clarões da madrugada
Vinham rompendo já no firmamento.
Chegava, emlim, a hora; era forçoso
Dizer adeus á seduetora imagem !
Que formosos versos! Como a paixão, pungida ligeira mente pelo espinho do remorso, desafoga n'estas ardentes estrophes, que um attractivo de melancolia torna mais insinuantes !
Não resisto á tentação de ainda trasladar para aqui mais uma parte d'esta composição. Agora o espirito diabolico, depois de haver apparecido ao poeta, e empenhado em per der Lelia, falla-lhe do seguinte modo :
— «Um sacerdote ancião, que além habita,
N'aquella ermida que d'aqui se avista,
Teima em não m'a deixar: tu só podias
Ajudar-me a vencer n'esta batalha,
lnda ha pouco menti, quando te disse
Ser tarde já para salvar a pomba.
É tempo ainda. Oh! vai! colhe as primicias
D'aquelle coração que te idolatra:
Tudo é luz, seducçao. amor, encanto,
Na voz, no olhar, ha languida ternura
Da rosa virginal que tu despresas. .
Anhelantes te esperam já seus labios;
O seu peito infantil por ti saspira;
No ouvido sente a voz dos teus protestos;
O subito rubor lhe affronta as faces;
Não a ves hesitar, tremer, fugir-te,
Acercar-se outra vez, sorrir a furto,
Escondendo nas mãos a fronte bella,
De novo inda luetar, mas já sem forças,
Cahir por flm num languido deliquio?
Oh! corre a ser feliz em braços d'ella!»
Um momento depois d'estas palavras,
Em doce consonancia estranhas vozes,
De improviso romperam n'este canto:
— «Seja a breve passagem da vida
Uma serie de ardentes delirios ;
Quem procura colher os martyrios ,
Quando existem as rosas em flor ?
Venturosos ergamos as taças,
Onde brilha o licor purpurino,
E soltemos as vozes n'um hymno
Consagrado aos deleites do amor !
Vem, poeta: as tristezas do mundo
Não comprimem jamais nossas almas ;
Nós cercamos de floridas palmas
A existencia votada ao prazer !
O que importa que a noite succeda
Aos sorrisos do astro diurno?
Para nós o astro nocturno
Mil delicias nos torna a trazer!»
Apossou-se de mim o immundo espirito.
— « Sou teu, ó tentador, emflm lhe disse:
Ao teu fatal poder entrego esta alma!
Dize, dize, onde está essa que eu vejo,
Mas que procuro em vão cingir nos braços !»
— «Onde está ? vaes sabel-o ; e n'um momento
A seus pés cairás ebrio de goso!»
Ao secreto aposento, onde jazia
A virgem de meus sonhos, me dirige
O torpe embaidpr. Entro em delirio,
É ardendo em chammas de brutaes desejos,
No casto ninho onde vivia a pomba.
De repente uma luz serena e branda
Veiu alegrar as trevas da minh'alma.
Outra vez á rasão volto, e que vejo?
Ante mim venerando sacerdote,
Pondo-me ao peito a cruz que mais tarde
A enganadora Julia me roubara.
Lelia a seu lado, com as mãos erguidas,
E os olhos postos no sagrado emblema,
Estas doces palavras me dizia:
— « Deixou-te o negro espirito !
Feliz, de novo agora,
Sorri tua alma em extasi
Ao ver a pura aurora,
Da qual somente é nuncia
Na terra a humilde cruz !
Só ella, eterno simbolo
De amor e de piedade,
Brilha no mundo esplendida,
E diz á humanidade :
Surge das trevas lugubres,
Ascende á etherea luz !
Mui de proposito transcrevi mais amplamente parte d'esta poesia, para evidenciar a modificação que pareceu operar-se no espirito do poeta. Sem perder de todo a singeleza primitiva, aquella graciosa singeleza de candidos affectos, que de certo fez appellidar a sua poesia de poesia loura, Bulhão Pato deixa entrever na Lelia, ainda atravez da antiga exaltação e do seu verdadeiro e sincero enthusiasmo, uns longes do sarcasmo de Affonso Karr e do azedume satyrico de Byron.
Mas isto é uma concessão á época. O prurido da analyse, esta incuravel enfermidade de nossos dias, que tem ido embotando nos espiritos os mais nobres e generosos impulsos, e semeado o desalento e a desesperança por muito espirito , tentou talvez o poeta , mas não o venceu .
Foi o Satanaz da saciedade pervertida , como elle mesmo o figura , que o levou até á beira do abysmo , onde , uma vez precipitado , o talento perde as azas candidas da sua innocencia primitiva , esquece de todo as imagens risonhas dos horisontes por onde espairecêra as illusões mais queridas do seu viver , e mal respira nas lobregas entranhas onde se passam as grandes miserias humanas .
O poeta , n ’ este triste estado , deixa a penna dourada das nativas concepções , e trava do escalpelo que disseca uma por uma as fibras do coração ; já não é o cantor singelo dos santos e nobres affectos , é o analysta caustico e ameaçador das nossas fraquezas .
Porém , a boa tempera da indole poetica de Bulhão Pato salvou - o a tempo . Nada mais avesso aos seus instinctos , ás suas predilecções , ao jacto nalural , limpido e sereno da sua veia , do que as irrupções abruptas do estro d ' estes poetas moralistas , d ’ estes libellistas metrificadores , mistura inces tuosa de Rabelais e Jeremias , que apregoam bem alto os defeitos do mundo , que fingem até condoerem - se d ' elles , para mais facilmente esconderem os seus .
E Bulhão Pato , um momento transviado das antigas predilecções , logo mostrou sua natural e directa propensão , compondo a inspirada dedicação a Helena , a sua ultima composição poetica [N'esta época , em 1862, data d'este artigo, esta poesia havia sido a ultima ], e que é um regresso felicissimo aos primeiros tempos do seu singelo e affectuoso poetar .
Que pena não a poder trasladar para aqui por inteiro ! Mas já nas primeiras estrophes o lei tor conhece a verdade do que fica escripto .
Lembras - te , Helena , o dia em que deixamos
O teu saudoso valle , é lentamente
Pela elevada encosta caminhámos ?
O sol do estio ardente
Já não brilhava nos frondosos ramos
Do arvoredo virente .
Chegára o fim do outono : a natureza ,
Sem ter os mimos da estação festiva ,
Nem aquelle esplendor e gentileza
Que tem na quadra estiva ,
Na languida tristeza ,
Na luz branda e serena
D ' aquelle ameno dia ,
Que immensa poesia ,
E que saudade respirāva , Helena !
Subindo pelo monte ,
Chegámos ao casal , onde habitava
A tua protegida ,
Aquella pobre anciã , que se agarrava
Aos restos d ' esta vida !
Assim que te avistou , ergueu a fronte ,
Curvada ao peso de tão longa idade ,
Sorrindo nesse instante
Com tal vida , que a luz da mocidade
Parecia alegrar o seu semblante !
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Vinte annos tu contavas nesse dia :
A fiel servidora
Era a primeira vez que não podia
Deixar a casa ao despontar da aurora ,
E , cheia de alegria ,
Caminhar para o valle como outr ' ora ,
Depôr uma lembrança em teu regaço ,
E unir - te ao coração n ' um meigo abraço !
Tu , na força da vida ,
Circumdada de luz e formosura ,
Foste levar a pobre desvalida
Os dons do lar paterno ;
Alegrar com teu riso de ternura
Aquelle frio inverno !
Ao ver - te , com teus braços
Nos seus braços senis entrelaçados ,
A ventura nos olhos encantados ,
A inspiração na fronte deslumbrante ,
Afigurou - me então o pensamento
Ver um anjo descido dos espaços ,
D ' aspecto fulgurante ,
Enviado por Deus nesse momento ,
Para animar os derradeiros dias
De quem , cançado do lidar constante ,
Abre o seio na morte ás alegrias !
As lagrymas de gosto
Corriam cristalinas
No rosto d ' ella e no teu bello rosto !
Como orvalhos do céo aquelles prantos ,
Um brilhava na hera das ruinas ,
Outro na flor de festivaes encantos ,
Na rosa das campinas ,
Quando voltaste a mim , illuminava
O teu semblante uma alegria infinda ;
Depois quizeste ainda Ir visitar a ermida que ficava
No ápice do monte .
Firmaste - te ao meu braço , e caminhamos .
No esplendido horisonte J
á declinava o sol , quando chegamos .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
É exactamente a mesma simplicidade de fórmas , a mesma pureza de affectos , o mesmo expansivo e natural desabafo do coração , sempre aberto ao amor e que o aspecto melan . cholico dos campos enche de saudade .
Onde se sente mais isto é na sentidissima elegia , levarla , como uma saudade sem esperança , á sepultura de Salvador Corrêa de Sá , amigo de infancia de Bulhão Pato . Parece que o anjo da dôr , depois de ter enchido a sua urna das lagrimas da amizade , as infiltrara todas no coração do poeta . Só um talento que tão de perto vive dos impulsos do co ração , poderia encontrar accentos de tão viva e penetrante agonia .
Vejam se não ha nos versos que vão seguir - se alguma coisa do sentimento intimo e delicado , que unicamente pertence ao affecto maternal ! E a mesma exquisita sensibilidade , o mesmo conjuncto de sensações afflictivas desentranhadas dos seios de alma , e coloridas pela eloquencia das dôres sem consolação .
« Bem sei que era exilio a terra
« Para ti . anio do céo !
« Porém , filha , abandonares - me ,
« Quando toda a minha vida
« Era a luz d ' um olhar teu ,
« Ouvir essa voz infante ,
« Ver a impaciente alegria
« De teu candido semblante !
« Deixar - me assim na existencia ,
« Triste , só , desamparado ,
« Aquella flor de innocencia !
« Que lhe fiz ? Tinha - a creado
« De quanto amor n ' este mundo
« Pela mão da Providencia
« A peito de homem foi dado !
« Oh ! que affecto tão profundo !
« E tu podeste partir ? !
« Pois não tiveste piedade
« Desta solemne amargura ,
« Desta infinita saudade ? !
« Vi - te inda olhar - me , e sorrir ,
« Ergụer os olhos aos céos ,
« No instante de proferir
« O fatal e extremo adeus !
« . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
« . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
« Oh ! volve outra vez a mim ,
« Desce a terra , anjo do céo ,
« Vem dar - me a ventura emfim !
« . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
« . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
« Olha : O vivo sol de abril
« Já nestes campos rompeu;
« As rosas desabroxaram,
« O rouxinol de prendeu
« A voz em saudosos cantos;
« Os sitios onde passaram
« Os teus descuidados annos,
« Não os ves cheios de encantos?
« São estes! A mesma fonte
« Ferve além; n'aquelle outeiro
« O meu casal alveja;
« As ramas do verde olmeiro
« Dão sombra á modesta igre|a,
« Onde tu vinhas resar,
« Quando o som da Ave-Maria,
« N'hora meiga do sol-posto,
« De vaga melancolia
« Toldava teu bello rosto.
« Tudo o mesmo !... esta inscripção !..
« Este nome!... anjo do ceo,
« Este nome, filha, é teu!
« Oh! meu Deus, por compaixão,
« Na mesma pedra singela,
« Juntae o meu nome ao della!»
« . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
« . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
E Deos ouviu a oração...
O mesmo tumulo encerra
Filha e pae. Na mesma lousa,
Onde repousam na terra,
Uma lagrima saudosa
Vem hoje depor tambem
A esposa, a viuva, a mãe !
Um dos mais subidos meritos de Bulhão Pato é a concisão admiravel do seu estylo, concisão que elle leva aos ver dadeiros resultados dos grandes mestres, principalmente quando bosqueja os paineis da natureza.
Os aspectos diante dos quaes a sua musa parece embevecer-se, são sempre sim ples e tristes, como a indole do poeta. O por-do-sol, o cair das folhas do outomno, o adro de uma aldeia, o casal que alveja ao longe por entre as cristas da serrania, são, em geral, as scenas que a phantasia se compraz de lhe aproximar, de contornar, e que lhe torna como os horisontes per manentes da sua existencia poetica.
Mas ha sempre um vivo sentimento de poesia n'estas pinturas; e é observando-as, e estudando-lhes os effeitos que a sua impressão nos produz, que se percebe bem que secretos dons de influencia moral exercem n'alma estas combinações, em que o poeta parece chegar a ser pintor, porque o pintor, para o ser ver dadeiramente, não pode deixar de ser poeta.
Alguns exemplos, colhidos aqui e acolá, explicam isto melhor que todas as analyses. Vejam se com linhas mais singelas se pode esboçar quadro mais amplo e solemne.
Nas nossas almas existia um mundo
De indefinito amor;
Do pélago profundo,
Onde ruge o furor
Insano, concentrado, atroz, maldicto,
D'esta cruenta guerra
Das ambições da terra,
Nem uma maldição, um som, um grito
Nos vinha perturbar!
Era a amplidão do céo, a solidão da serra,
Ao longe... a voz do mar!
Que magestade e simplicidade de linhasl Outro quadro não menos verdadeiro:
Daquelle pobre casal.
O fumo que vae subindo,
Em ondulante espiral,
Não diz que em volta do lar
Se reune a pobre gente,
Que já de perte presente,
O frio inverno chegar?
Quita não saberia traçar melhor este painel campesino.
Agora este outro que parece sair da palheta suave e melancholica de Gessner. Ha n'elle o sentimento dos magicos aHectos da natureza, que tão bem comprehende e exprime a musa allemã.
Era singelo, mas sublime o quadro !
Em roda o mato agreste;
No meio a pobre ermida; ao lado d'ella
Um secular cypreste ;
E sobre a cruz do adro,
Pendente, uma capella
De algumas tristes, desbotadas flores,
Talvez emblema de profundas dores !
Bulhão Pato tambem algumas vezes tem ensaiado o genero satyrico, e com felicidade, como se vê pela poesia o Brinde, que é um desfechar constante de epygrammas contra algumas das grutescas personificações da nossa comedia politica.
Comtudo eu prefiro, declaro-o francamente, ver tão bello estro sem abater os voos a estes charcos. As suas tendencias são outras, e mui diversas. O talento que vive do coração, a mente que se inflamma com o fogo dos sentimen tos nobres e serenos, não pode prestar-se a acceitar em o numero de suas predilecções assumptos repugnantes , e cujo halito cresta sempre as azas candidas da inspiração .
Que Bulhão Pato é o primeiro a repellir , com o seu desdem , estas lastimaveis individualidades , dignas só de attrahirem as iras do libellista ; e nas raras horas em que a sua musa lhe tem emprestado algumas expressões de zombaria con tra taes creaturas , ha sido sempre com a hombridade e de sabrimento de quem applica uma correcção por força de necessidade : é antes uma pirraça do genio insoffrido do mancebo , que um desafogo do poeta . Este não se rebaixaria a tanto .
Agosto — 1862 . (1)
(1) José Maria de Andrade Ferreira, Litteratura, musica e bellas-artes. v.1., LIsboa, Rolland & Semiond, 1871
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