N'um esboço tocado de traços fugitivos não cabe de certo a minucia demorada, mas indispensavel no retrato para a semelhança perfeita das feições e das physionomias. Por mais sobrio de divagações que seja o escriptor, torna-se-lhe muito difficil, senão impossivel, contrahir na tela acanhada de um capitulo as magestosas ondulações de uma corrente de poesia que ha vinte e quatro annos* despraia pelas margens da nossa litteratura depon do n'ellas o nateiro abundante e riquissimo de suas creações poeticas.
Bulhão Pato (1828-1912) (insp. Andy Warhol, Ten Lizes, 1963) |
* Data de 1850 a apparição das primeiras poesias de Bulhão Pato. Seguem-se-lhe em 1857: Amor virgem n'uma peccadora, comedia-drama em um acto, prosa e verso 1862 ; Versos , 1 vol . 1864 : Digressões e novellas , 1 vol . , e Graziella , versão de Lamartine 1866 : Paquita ( poema ) , 1867 ; Canções da tarde , 1 vol . - 1869 ; Flôres agrestes , 1 vol . 1871 ; Paisagens ( prosa ) , 1 vol , 1873 ; Cantos e satyras , 1 volume. Editores , Rolland e Semiond , 1873, Lisboa ; Renan e os sabios da academia ( satyra ) , O cemiterio de Pisa , e a Vendetta , versões de Emilio Castellar , e de Balzac.
De feito , a indole primordial e as evoluções subsequentes do talento de um escriptor ou de um poeta qualquer , teem mais do que affinidade remota com as nascenças de um rio. Como este , o talento tambem brota modesto de suas origens , e engrossa depois a sua corrente , já derivando se reno , já correndo agitado , ora apertando-se em voltas caprichosas , ora alargando seu alveo e rolando magestoso até se metter no oceano ordinariamente tempestuoso da fama litteraria . Porque é que , aos 19 annos , apaixonado e ter no como um trovador , com a bocca ainda humida do ultimo beijo , a mente escandecida por visões encantadas e por sonhos voluptuosos que — sómente a aurora desfaz arroxeando o horisonte , para voltarem na noite immediata , — canta os amores juvenis , com seus enleios e suas malicias tam bem ?
Porque scisma dôcemente Bulhão Pato vendo os lirios e as boninas em que pousa o orvalho das manhãs de abril ? Porque aspira com embriaguez o aroma dos campos ? Porque escuta os mil rumores mysteriosos do bosque ? Porque se fica esquecido a contemplar as nuvemsinhas do poente e as sombras melancolicas do crepusculo da tarde ? E porque é tambem , que passados vinte annos , vêmos o mesmo poeta , outr ' ora rescendente das essencias mais fragrantes do lyrismo , despedir-se , pelo menos momentaneamente , das canções amorosas , arrancar as cordas do seu alaúde romantico para pulsar a lyra fremente da indignação vingadora de Juvenal , de Augusto Barbier e de Victor Hugo ?
É facil conciliar esta contradicção apparente , pois não é senão uma phase natural de sua indole poetica , lembrando-nos de que Bulhão Pato é um poeta essencialmente espontaneo ; que a sua poesia é o reflexo fiel da sua alma . Suas canções risonhas como uma alvorada de maio quando as illuminava o sol da primeira mocidade , assumiram nas satyras já a gravidade das paisagens severas , já o aspecto tragico das cataratas que se despenham no inverno com medonho estrepito , ou o das noites de procella cuja escuridão é apenas alumiada pelo fulgor livido dos relampagos.
É que a doçura das illusões juvenis cortou-lh'a o travo das decepções ; é que aos idyllios descuidosos da manhã da vida seguiu-se , no poeta , o drama viril da existencia com o seu cortejo de lutas , e de paixões acerbas.
Foi este pendor natural por onde o poeta foi levado das regiões tranquillas da poesia individual e lyrica aos espaços tempestuosos da poesia social e da satyra politica , aonde as coleras , os resentimentos e até as proprias aspirações do poeta , ou antes do partidario , é inevitavel que tumultuem com o fragor e a espuma das ondas irritadas. Se a Nemesis politica pode ser , como é sempre nas satyras de Bulbão Pato , elevada , decorosa e elo quente , nem por isso está isenta , em outros poe tas contemporaneos , das allucinações do furor , e dos rebates rancorosos.
Poeta de verdade , fiel ás vozes interiores da consciencia que o chamam a combater por uma causa em que vê o triumpho da justiça , ou a fulminar os que se lhe afiguram vicios e hypocrisias sociaes com os seus terriveis alexandrinos , verda deiros raios despedidos pela mão de Juvenal , Bulhão Pato é tão espontaneo e sincero hoje na explosão das paixões , que o abrazam , como o era d'antes nas effusões do seu adoravel lyrismo.
A sua musa , agora como sempre , não se envolve em roupagens theatraes , nem carece de lentejoulas para nos seduzir com os seus encantos . É essencialmente singela , desaffectada , natural . O seu culto é o do bello , idealisado pela arte . Se algumas superstições alimentar , como todos os cultos , serão as da sinceridade dos sentimentos , da espontaneidade das impressões.
Será esta a ultima e definitiva phase do seu talento poetico , affirmado por tantos monumentos , em que a sua phantasia ao mesmo tempo vigorosa e delicada gravou as suas creações como os esculptores mais afamados gravaram com o cinzel as suas no marmore antigo mais puro ?
Não o acreditamos . A natureza com as suas vozes mysteriosas ; o coração humano com os seus enleios , esperanças e amarguras ; os mil dramas commoventes da existencia ; as subtilezas e os arcanos psychologicos da alma ; as tragedias moraes da paixão , em que gemem e succumbem , duramente suppliciados , os affectos mais intimos ; eis a tela larga e permanente em que hão-de voltar a embeber-se as côres da palheta opulenta e admiravel do nosso eminente poeta . Ainda bem , que as apostrophes e as coleras partidarias são apenas na vida social , e na littera ria tambem , um ephemero accidente.
Especie de relampagos que atravessam a atmosphera , sua claridade é momentanea , como momentaneo é tambem o ribombo do trovão que os acompanha.
Afastados os negrumes da procella , o céo recobra a antiga transparencia etherea , semelhante á superficie azul de um lago immenso que nenhuma aragem encrespa.
Quaes são as feições salientes do genio poetico de Bulhão Pato ? a imaginação , a sensibilidade , a perfeição inimitavel da fórma , e o gosto sem igual.
Em todo o poeta , que o é deveras , ha forçosamente a coexistencia da imaginação , que cria as ficções , as scenas , os personagens , com a sensibilidade que o domina , antes de nos commover , e com a melodia do rythmo cujas cadencia , sonoridade ou valentia formam a linguagem sublime da linguagem da poesia . A todo este conjuncto feliz de qualidades devem presidir as leis soberanas do gosto que lhe dão relevo , vigor , graça e harmonia.
Quando o poeta melodioso da "Harpa do crente" e da "Voz do propheta" [Alexandre Herculano] escreveu no prologo da Paquita que "Bulhão Pato é sobre tudo um homem de gosto e que o homem de gosto é sobre tudo singelo" , resumiu n 'um traço a physionomia inteira do author dos Cantos e satyras.
Alexandre Herculano (1810-1877). Retrato por Francisca de Almeida Furtado, 1852. MNAA, Obras em reserva, O museu que não se vê. |
Adivinha-se n'elle a sua predilecção pela singeleza de Garrett , desespero de tantos que inutilmente a teem procurado na poesia e na prosa . Nas "Digressões e novellas" , bem como nas "Paisagens" , digamos , ha contos e episodios narrados e descriptos com tal suavidade de linguagem e tal frescura de tintas , o colorido é ao mesmo tempo tão sobrio e acertado , a trama da prosa tão finamente tecida , o dizer tão caloroso e casto , que acabando de lêr aquellas paginas , nos sentimos consolados , não só com a certeza de não haver desapparecido com o visconde d'Almeida Garrett o estylo elegante , singelo e sobrio das Viagens na minha terra , mas até de o vêrmos luzir na simplicidade das suas roupagens , tão animado como d'antes , flexivel , eloquente.
Voltando á sua poesia , podemos dizer que Bulhão Pato canta suavemente , ternamente , quer o enlevem as scenas da natureza , quer o commovam as dôres profundas ou as miserias dilacerantes dos supremos infortunios . Nas cordas da sua lyra resốam-lhe espontaneos os canticos , como o vento na harpa eolia , desferindo por si mesma as notas e as estrophes . A melodia , a tristeza e o amor divagam pelas cordas do seu alaúde como o luar de uma noite de outono pelas campinas , avel ludando - as com sua doce e pallida claridade.
O seu ideal poetico nem é o naturalismo exagerado de Goethe nem a ironia desesperada de Byron.
Respira-se nos seus poemas o perfume do lyrismo de Garrett e de Lamartine , interrompido a espaços pela toada doudejante de Musset , mas illuminado e aquecido pelas chammas do sol da peninsula que lhe dourou o berço.
Almeida Garrett (1799-1854) Retrato por Manuel Araujo Porto-Alegre, 1833. Instituto Camões |
Abundam na harpa do poeta as notas sentidas da elegia , e alguns dos seus poemetos , entre elles a "Rosa do monte" e "Os Noivos" , são deliciosos pelo interesse dramatico que os anima , pela paixão intensa que respiram e pela perfeição dos moldes poeticos.
Em ambas estas composições, admiraveis de fórma , o poeta elevou-se á mais alta sensibilidade, orvalhando-as de lagrimas e commovendo-nos. Que sobriedade de traços na pintura da aldea, nos Noivos, e que sympathia contagiosa pela vida aspera dos pobres pescadores !
A aldea é de pescadores .
Por essas costas do mar ,
Quando as tormentas começam ,
Aquillo é que é labutar !
Ás vezes um mez a fio ,
O vento sem acalmar ,
E os vagalhões dia e noite
Nas rochas a rebentar !
Algum remedio , e bem pouco ,
Que tanto custa a juntar ,
Pois basta um mez de invernia ,
Nem tanto , para o levar !
Que vida a da pobre gente ,
Quando começa a lutar
O vento bravó co ' as ondas ,
Por essas costas do mar !
Ha quatro casas e a ermida
De pedra e cal , o demais
Choças de colmo que ás vezes
Destroem os vendavaes.
Mas quando chega o bom tempo ,
E a pesca não escaceia ,
Respira toda alegria ,
Apesar de pobre , a aldea.
A pintura da noiva de Daniel, o arrojado pescador , é um modelo de poesia, e de naturalidade, em que se reproduzem as altas faculdades do poeta, a imaginação viva, a singeleza graciosa, a ternura tocante e o atticismo da fórma :
Amparo tinha no rosto
Uma expressão de ternura ,
Que lhe daya mais encantos
Do que a propria formosura !
Os olhos azues purissimos ,
E de transparencia tal ,
Que deixavam lêr no fundo
Da sua alma virginal !
O cabello louro - escuro ,
Tão basto , tảo annelado ,
Que era um primor , posto em tranças ,
E um enlevo , desatado !
No tempo em que era criança
E de genio folgazão ,
Com as outras raparigas ,
Pelas tardes de verão ,
Andava a brincar na praia ,
E a espreitar de quando em quando
Os hombros nús , mais que os hombros . . .
Em fim co ' as ondas folgando.
N ' isto vinham os rapazes —
Mas o cabello era tanto ,
Que sacudia a cabeça ,
E servia - lhe de manto !
E que vêa dramatica lateja na rapida scena do temporal que de repente se levanta !
O céo estava sereno ;
Era propicia a estação :
Logo em entradas de outono ,
Dias como de verão.
Porém o vento levanta - se
E quando menos se espera ,
Seja verão , seja outono ,
Seja inverno ou primavera.
Daniel , deixando os outros ,
Com a companha a seu cargo ,
Fez - se ao mar , largando as artes
A duas leguas de largo.
O peixe dava em cardumes ;
Lidando não attentaram
No aspecto de certas nuvens
Que no céo se agglomeraram.
Dentro de pouco os relampagos
Nos ares a fuzilar ,
E o vento a picar as ondas ,
E as ondas a rebentar !
Podiam correr á pôpa
Mas não sem todo o cuidado
Que á pôpa , em cahindo tempo ,
E ' navegar arriscado.
A véla posta nos rizes —
O vendaval carregava —
Como um falcão corta os ares ,
O barco as ondas cortava !
Amparo , sobre um penhasco ,
De mãos postas a rezar :
A morte no arfar do seio ,
Ancias de morte no olhar.
Elles já perto da costa ,
E o povo junto a dizer :
« Se o barco vem aos cachopos
Só Deus lhes póde valer ! »
Tentaram fazer - se ao largo ,
Lutando co ’ a morte a braços ;
Mas deram sobre os rochedos ,
E o barco fez - se em pedaços !
Com que saudade nos apartamos dos vergeis amenos , das solidões melancolicas ou das campinas risonbas por onde divagam alternadamente os folgares e as tristezas do seu lyrismo , lagrima crystallina em que por instante brinca um raio de sol !
Com que pena dizemos adeus aos lagos transparentes em que o vêmos espanejar suas azas brancas de cysne , para seguirmos embora por poucos instantes o poeta ás regiões tempestuosas da satyra , onde os jambos de Archilocho fuzilam como raios por entre as nuvens negras de procella e os alexandrinos esplendidos do nosso poeta ullulam , encapellando - se , como vagas enfurecidas , e possessas do demonio da tormenta !
Ouçam esse brado , em que renascem as mofas e o desprezo de Juvenal :
Lá vai correndo as ruas da cidade ,
A quatro , um titular da grande sociedade .
Que apparatoso trem , que fardas d ’ espavento !
Pasma o futil vulgacho em face do portento !
Quem é ? sabem quem é : conhece - o todo o mundo :
Um nobre , um par do reino , um sapo nauseabundo ,
Que á plena luz do sol , viscoso e repellente ,
Ou na praça ou na rua enoja a toda a gente !
Este illustre varão , poço de iniquidades ,
Tem — faculta - lhe a lei — varias immunidades :
Póde até legislar ! ó povo desgraçado ,
Decide - te da sorte o voto d ’ um forçado ,
Que , se houvesse moral , já não seria estranho
Vêl - o com a braga ao pé a trabalhar no banho !
A satyra que tem por titulo "Dalila" reune , a meu vêr , quantos predicados se exigem da satyra , para que ella nem na grandeza , nem na magestade , nem na eloquencia , nem na indignação , nem na ironia , desça das alturas em que deve pairar , sob pena de deixar de ser à musa terrivel do sarcasmo e transformar - se na collareja desbragada e plebêa dos mercados.
Este é o perigo supremo , a catastrophe séria que ameaça a maior parte das imprecações poeticas da actualidade . A satyra ha - de ser mais do que um aggregado de epithetos deprimentes e de injurias villăs , embora ligados n ' um feixe poetico pelo laço prestigioso de um rythmo sonoro e opulento.
É preciso sobre tudo que a satyra não perca nunca a elevação da idéa , a finura subtil da analyse , o cambiante feliz e inesperado nos traços incisivos e rapidos das suas ironias e que a colera , que a domina , não a afunde no charco das obscenidades grosseiras nem a rebaixe ás indecencias avinhadas de uma bacchante meio despida.
Eis um trecho da satyra a que nos referimos :
Que singular mulher !
que estranha formosura !
Tem tudo — o andar , o gesto , a graça da figura !
No purissimo azul dos olhos crystallinos
A luz que nos transporta aos extasis divinos .
Casando - lhe a altivez co ’ a timida innocencia ,
Deu - lhe ao rosto o ideal a mão da Providencia.
O devoto dirá , vendo - a rezar no templo :
« Não pode ser do mundo aquella que eu contemplo ;
Se és anjo implora a Deus o bem da humanidade ! »
Tal assombro produz a magica beldade !
Pois bem , esta mulher — mulher unicamente —
Enreda , calumnia , infama a toda a gente.
No livro de orações á margem tem marcado
O dia da entrevista , o ponto combinado.
Uma vez escondeu , por ser o caso instante ,
No berço d ' uma filha as cartas d ’ um amante.
Profanando , sem alma , o coração do lar ,
Profana tudo mais : a prol ' , o templo , o altar ;
Mas como entra no mundo apparatosa e rica ,
Co ' as virtudes da santa o mundo se edifica !
Esta magnifica satyra , recheada , como vêem , de contrastes felizes , de antitheses de hypocrisia e de devassidão , de perfidia e de cynismo , prosegue sempre variada nos tons , acertada nos cambiantes e nas gradações . Na ultima parte d'ella , o poeta figura uma infeliz trahida nos seus amores pelo homem de quem teve uma filha . A sociedade mostra - se indifferente a tão grande infortunio.
Perante este egoismo revoltante do corpo social o poeta exclama :
O mundo que applaudiu as galas deslumbrantes
Da perfida ao marido e perfida aos amantes
Co ' a implacavel moral que inflamma a gente séria
Desampara a infeliz prostrada na miseria.
Bemdito seja Deus ! — os que mais fazem d ' isto
Andam sempre a invocar teu santo nome , ó Christo.
A moralidade que respira esta composição , o caracter impessoal com que fecham estes versos esplendidos , irreprehensiveis , aonde , além do ar tista que inventa , ha o lapidario paciente que pule os prismas do diamante , o Benvenuto Cellini que lavra com um buril privilegiado e unico os pri mores da phantasia , tornam admiravel a satyra de Dalila ; e provam a elevação artistica a que póde attingir , nas mãos de um poeta eminente e sabedor da arte , um genero aliás tão perigoso e cercado de precipicios.
As suas satyras , até hoje publicadas , respiram pela maior parte a punição das apostasias e a au dacia generosa das aspirações da liberdade , sem os doestos e as represalias sanguinolentas que ge ralmente , seja qual fôr o paiz e o talento do es criptor , salpicam a satyra , e por vezes a fazem rojar pelos tremedaes , desgrenhada , odienta , plebêa.
Quando nos lembra que Barbier , o notavel e fogoso poeta , que em plena monarchia de julho fez lampejar em todo o seu fulgor os raios da satyra antiga , descrevia a liberdade como uma mulher robusta ,
Qui ne prends ses amants que dans la populace
Qui ne prête ses larges flancs
Qu ' a des gens forts comme elle , et qui veut qu ' on l ' embrasse
Avec des mains rouges de sang ,
e se extasiava com o fanatismo servil de um li berto de Claudio diante das escorias sociaes , ani . madas de odios profundos ás quaes elle chama
La grande populace et la sainte canaille
é facil prever a quantas aberrações , a quantos desregramentos póde arrastar , quando manejada por mãos imprudentes ou inhabeis , esta arma litteraria em que , se por um lado , respiram as paixões nobres e viris , por outro fermentam , não raro , os sentimentos baixos , as vinganças biliosas , e a licença deshonesta das maximas torpezas.
Ainda bem que a satyra de Bulbảo Pato é sempre elevada . Que outros não a prostituam aos convicios das encruzilhadas e não a manchem com o lodo das infamias partidarias , é o nosso voto mais sincero.
Oxalá que não se vulgarize um genero litterario que , pela sua mesma natureza , não pode ser na arte senão uma manifestação excepcional , tendo - se em conta a exaltação febril e as paixões acerbas , necessarias para a sua gestação , e de que ella vive infelizmente como da sua vida natural e permanente.
Sente - se porém admiração espontanea , irresistivel , bemdiz - se até o jambo de Archilocho e o latego de Juvenal , quando n ' elles trôa a eloquencia vingadora de "Victor Hugo no Calvario" , e da "Velhice do Seculo" . É que então a arte reveste - se , deslumbrando - nos , de todos os esplendores das auroras boreaes.
Quando a musa sobe tão alto na indignação e na eloquencia , e dos seus pincaros de luz e de chammas , ao mesmo tempo magestosa e terrivel , dardeja raios ardentes , que alumiam e abrazam quanto tocam , a grandeza solemne da scena asso berba o espectador , e subjuga - lhe por tal forma as faculdades da analyse e da critica , que estas co mo que se paralysam , para só viverem as do en thusiasmo e as da admiração.
Ouçamos o poeta [cf. Victor Hugo no Calvario ( Cantos e Satyras ) , pag . 160]:
Já um dia em Paris a honrada burguezia
Fraternizou tambem co ' a santa clerezia ,
Protegeu a matança , e depois d ' esso horror
Assentou sobre o throno um certo imperador.
Veio à paz , engordou - - embora amordaçada ,
— O clero a dominar a plebe fascinada ;
Nos campos a nudez , nas côrtes a opulencia ;
Os excessos do luxo a darem na demencia ;
Censura ao pensador , licença ao imbecil ,
Ao zombeteiro estulto , ao escriptor mais vil .
Que succedeu depois ? - o tronco derrancado
O fructo que produz é fructo desgraçado.
O direito era a força , e julgando - a tamanha
Claudio ousou provocar os brios da Allemanha .
O clero abençoava o protector de Roma :
Rugia o seu leão e sacudia a coma .
De repente a panthera atira - se ao leão ,
Mas encontra na garra um Cesar charlatão.
Não podem apagar - se versos como estes . Fundidos em bronze , teem a solidez e hão - de ter a duração e o relevo das moedas e das estatuas d ' aquelle metal . A posteridade ha - de sentir para estas composições a mesma admiração que sente para as satyras de Persio e de Juvenal , de Barthelemy e de Augusto Barbier ; porque nas satyras de Bulhão Pato fundem - se com primor igual a grandeza e a elevação da invectiva na pureza inexcedivel , perfeitissima do rythmo , — nos mais sonoros e va lentes alexandrinos , em que pode esculpir - se a linguagem de um poeta portuguez.
Troveje elle muito embora na satyra e folgue , por momentos , de sé nos revelar por entre os fulgores do raio e o graniso de fogo dos coriscos dos seus alexandrinos ; mas , por Deus lh ' o pedimos , não se despeça das regiões do seu lyrismo encantador.
Não diga para sempre adeus á musa travessa e de vaneadora da Paquita , — d ' esse poema que lhe con quistou os fóros de eminente poeta , — d ' esse poema , que é um monumento indestructivel como já é também o tormento dos seus detractores ; por que bem sabe elle que a corôa da gloria litteraria é desgraçadamente cravada , por dentro , dos espinhos da inveja , que , por baixo das folhas de lou ro estão de continuo ensanguentando a fronte dos infelizes que a cingem!
Em resumo : eloquente , magestoso , por vezés terrivel , vibrando o sarcasmo , manejando a iro nia , nunca descahindo nas vulgaridades grosseiras , nem se atolando nos paúes da injuria torpe ( escolho dos talentos pouco delicados que confundem o vo zear das feiras com as imprecações nobres ) , Bulbão Pato sabe dar ás suas satyras as mais altas condições de decoro , de pudor , e de grandeza , de que é susceptivel esta fórma de poesia.
As suas invectivas teem a magestade classica . Assumem proporções epicas , os sacrificios , as he catombes , em que supplicía as suas victimas . Inspiram - no porém , sem nunca o desamparar , senti mentos nobres , propositos generosos , amor arden te da justiça , da liberdade , do progresso humano e social.
É por isso que , percebendo as intenções puras do poeta , sem desconhecermos as exagerações a que aliás póde levar tal genero de poesia , o applaudimos por esta brilhantissima manifestação do seu talento , onde alcançou victoria não menos assignalada e decisiva do que nos canticos da poesia lyrica , nos carmes da elegia , e principalmente nas ficções graciosas da Paquita , em que com felicidade summa seguiu entre nós as pisadas do Ariosto e de Casti , affirmando sempre a sua individualidade.
D'essa Paquita , de quem o snr. Alexandre Heculano escreveu "que a amou desde o berço porque representa na litteratura actual uma res tauração , e nega um progresso: restauração santa e progresso mentido", esperamos com avidez que não se demore a contar-nos o seguimento das aventuras que correu com o seu Pepe.
Está a pular-nos na memoria a lembrança d'aquella ermida, em que ao repontar do sol nos outeiros, Angelita se encontra com Pepe, enleados de se verem aquella hora da manhã. E o pasmo de Pepe quando em sitiaes ouve que Angelita pretende casal-o ? E a ingleza que n'esse momento se aproxima dos dous ? E as questões acaloradas entre o marido de Herminia e o da consuleza ? E o desafio dos dous apaziguado pelo mofino do Pepe, cujos amores esvoaçam sobre as tres adoraveis creaturas que o cercam, como borboletas sobre flôres ? E aquella walsa do baile, cuja descripção tem a vi vacidade calorosa da do Amaury ? E a viagem da despeitada Herminia para Athenas ? a febre mortal de Pepe quando se vê abandonado por ella ? a solicitude de Angelita correndo de noite a visitar o joven andaluz moribundo ? e o encontro d'ella com a formosa Adelina, a ingleza dos olhos azues, junto do leito do enfermo ?
Quando nos ha-de elle desenvencilhar toda esta meada intrincadissima ?
Ricardo Augusto Pereira Guimarães (1830-1889), Visconde de Benalcanfôr. |
Os lances enredam-se alli n'um tal labyrintho vertiginoso de aventuras, de malicias, d'enganos, de paixões, que só poderemos alcançar o fio de Ariadna na continuação do poema, de que o author (esperamol-o ) não abrirá mão, sem primeiro satisfazer a nossa curiosidade, rematando ao mesmo tempo o monumento da sua gloria de poeta, monumento que ha-de avultar para o futuro entre os mais bellos e originaes da nossa poosia contemporanea. (1)
(1) Ricardo Augusto Pereira Guimarães, Phantasias e escriptores contemporaneos, 1874
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