«Se passares pelo adro,
No dia do meu enterro,
Pede á terra que não gaste
As tranças do meu cabello.»
Canção Popular.
I
A aldea é de pescadores.
Por essas costas do mar,
Quando as tormentas começam,
Aquillo é que é labutar!
Desenho da Costa antiga, autor António Lopes Martins, Col. Particular. Rui Manuel Mesquita Mendes (fb) |
Ás vezes um mez a fio,
O vento sem acalmar,
E os vagalhões dia e noite
Nas rochas a rebentar!
Algum remedio, e bem pouco,
Que tanto custa a juntar,
Pois basta um mez de invernia,
Nem tanto, para o levar!
Que vida a da pobre gente,
Quando começa a lutar
O vento bravó co'as ondas,
Por essas costas do mar!
II
Ha quatro casas e a ermida
De pedra e cal, o demais
Choças de colmo que ás vezes
Destroem os vendavaes.
Mas quando chega o bom tempo,
E a pesca não escaceia,
Respira toda alegria,
Apesar de pobre, a aldea.
Daniel é moço e forte;
Ninguém com elle compete,
Já no saber, já no arrojo
Com que a todo o mar se mette!
Vê-se uma negra de peixe —
Ás vezes mal se tem visto:
Lá vae co'a sua companha
Por esses mares de Christo.
Tem fé co'a Virgem do Amparo,
E alguém diz qne a devoção
É por ser Amparo o nome
De certa rosa em botão.
D'entre as demais raparigas
Só ella não é trigueira,
Também não se expõe ao tempo,
Trabalha como rendeira.
Lidar de noite e de dia,
Com tanto affinco, é bem raro!
Esteio da mãe velhinha,
Bem posto o nome de Amparo!
Daniel, n'aquella aldeia
Onde o viver é tão parco,
Já tem um barco, e tem redes,
Quo valem mais do que o barco.
III
A mutua affeição dos dois,
Que era na infância amisade,
Tomou-se em amor, depois
Que entraram em certa idade.
Elle quiz-se declarar,
E com voz entrecortada,
A custo poude fallar:
Ella é que não disse nada!
Sentindo agitado o seio,
Não raro diz a innocencia,
Com a mudez do receio,
Bem mais que a voz da eloquência!
Que importa o que os lábios calam,
Quando as palavras se prendem?
Também as flores não fallam,
E pelo aroma se entendem!
É que esse aroma, imagino
Que será, talvez, na flor
O mesmo effluvio divino
A que chamamos amor !
IV
Amparo tínha no rosto
Uma expressão de ternura,
Que lhe dava mais encantos
Do que a própria formosura!
Os olhos azues purissimos,
E de transparência tal,
Que deixavam ler no fundo
Da sua alma virginal!
O cabello loiro-escuro,
Tão basto, tão annelado,
Que era um primor, posto em tranças,
É mn enlevo, desatado!
No tempo em que era creança,
E de génio folgasão,
Com as outras raparigas,
Pelas tardes de verão;
Andava a brincar na praia,
E a espreitar de quando em quando:
Os hombros nús, mais que os hombros...
Emfim, co'as ondas folgando.
N'isto vinham os rapazes —
Mas o cabello era tanto.
Que sacudia a cabeça,
E servia-lhe de manto!
Ao amado da sua alma
Deu ella um dia, em secreto.
Um annel d'esses cabellos.
Penhor de sagrado affecto!
E elle, cheio de alvoroço,
Sem hesitar um momento,
Para pagar-lhe a fineza,
Foi pedil-a em casamento.
Fundíam-se aquellas almas
Em celestiaes alegrias:
Ha dias do ceu na terra!
Eu creio que ha d'esses dias!
V
Uma tarde, era nas vésperas
De se fazerem as bodas,
Os pescadores na costa
Largavam as redes todas.
O ceu estava sereno;
Era propicia a estação:
Logo em entradas de outono,
Dias como de verão.
Porém o vento levanta-se!
E quando menos se espera.
Seja verão, seja outono,
Seja inverno ou primavera.
Daniel, deixando os outros,
Com a companha a seu cargo,
Fez-se ao mar, largando as artes
A duas léguas de largo.
O peixe dava em cardumes;
Lidando não attentaram
No aspecto de certas nuvens
Que no ceu se agglomeraram.
Dentro de pouco os relâmpagos
Nos ares a fuzilar,
E o vento a picar as ondas,
E as ondas a rebentar!
Podiam correr á popa,
Mas não sem todo o cuidado,
Que á popa, em caindo tempo,
É navegar arriscado.
A vela posta nos rizes
— O vendaval carregava —
Como um falcão corta os ares,
O barco as. ondas cortava!
Amparo, sobre um penhasco.
De mãos. postas a resar:
A morte no arfar do seio,
Ancias de morte no olhar
Elles já perto da costa,
E o povo junto a dizer:
«Se o barco vem aos cachopos
Só Deus lhes pode valer!»
Tentaram fazer-se ao largo,
Luctando co'a morte a braços;
Mas deram sobre os rochedos,
E o barco fez-se em pedaços!
Salvou-se toda a companha.
Daniel inda se ouviu
Bradar: — «Ó Virgem do Amparo!»
E nisto não mais se viu...
A noiva soltara um grito;
Mas quem lhe fôra acudir,
Vira-lhe o rosto sereno,
E até a bocca a sorrir!
Aquelle grito estalara-Ihe
As fibras do coração
E a infeliz, nesse momento,
Tinha perdido a razão!
VI
Passados dias, Amparo
Puiha-se á beira do mar,
A olhar — como quem espera
Por alguém que hade voltar!
E os que passavam ouviam-lhe,
Sem que ella desse por tal,
Repetir estas palavras
D'uma tristeasa mortal:
«Devem cumprir-se os pedidos
D'aquelles que vão morrer;
Uma só coisa te peço,
— Mas que tu me has de fazer:
«Se passares pelo adro.
No dia do meu enterro,
Pede á terra que não gaste
As tranças do meu cabello.»
E depois, soltando as tranças
A larga brisa do mar,
Repetia inda estes versos,
E desatava a chorar!
Janeiro, 1871 (1)
(1) Bulhão Pato, Cantos e satyras, Lisboa, Rolland & Semiond, 1873
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