sábado, 20 de junho de 2020

Os noivos (último canto de Bulhão Pato)

«Se passares pelo adro,
No dia do meu enterro,
Pede á terra que não gaste
As tranças do meu cabello.»
Canção Popular.

I

A aldea é de pescadores.
Por essas costas do mar,
Quando as tormentas começam,
Aquillo é que é labutar!

Desenho da Costa antiga, autor António Lopes Martins, Col. Particular.
Rui Manuel Mesquita Mendes (fb)


Ás vezes um mez a fio,
O vento sem acalmar,
E os vagalhões dia e noite
Nas rochas a rebentar!

Algum remedio, e bem pouco,
Que tanto custa a juntar,
Pois basta um mez de invernia,
Nem tanto, para o levar!

Que vida a da pobre gente,
Quando começa a lutar
O vento bravó co'as ondas,
Por essas costas do mar!

II

Ha quatro casas e a ermida
De pedra e cal, o demais
Choças de colmo que ás vezes
Destroem os vendavaes.

Mas quando chega o bom tempo,
E a pesca não escaceia,
Respira toda alegria,
Apesar de pobre, a aldea.

Daniel é moço e forte; 
Ninguém com elle compete, 
Já no saber, já no arrojo 
Com que a todo o mar se mette!

Vê-se uma negra de peixe —
Ás vezes mal se tem visto: 
Lá vae co'a sua companha 
Por esses mares de Christo. 

Tem fé co'a Virgem do Amparo, 
E alguém diz qne a devoção 
É por ser Amparo o nome 
De certa rosa em botão. 

D'entre as demais raparigas 
Só ella não é trigueira, 
Também não se expõe ao tempo, 
Trabalha como rendeira. 

Lidar de noite e de dia, 
Com tanto affinco, é bem raro!
Esteio da mãe velhinha, 
Bem posto o nome de Amparo!

Daniel, n'aquella aldeia 
Onde o viver é tão parco,
Já tem um barco, e tem redes, 
Quo valem mais do que o barco.

III

A mutua affeição dos dois,
Que era na infância amisade,
Tomou-se em amor, depois
Que entraram em certa idade.

Elle quiz-se declarar,
E com voz entrecortada,
A custo poude fallar:
Ella é que não disse nada!

Sentindo agitado o seio,
Não raro diz a innocencia,
Com a mudez do receio,
Bem mais que a voz da eloquência!

Que importa o que os lábios calam,
Quando as palavras se prendem?
Também as flores não fallam,
E pelo aroma se entendem!

É que esse aroma, imagino
Que será, talvez, na flor
O mesmo effluvio divino
A que chamamos amor !

IV 

Amparo tínha no rosto
Uma expressão de ternura,
Que lhe dava mais encantos
Do que a própria formosura!

Os olhos azues purissimos,
E de transparência tal,
Que deixavam ler no fundo
Da sua alma virginal!

O cabello loiro-escuro,
Tão basto, tão annelado,
Que era um primor, posto em tranças,
É mn enlevo, desatado!

No tempo em que era creança,
E de génio folgasão,
Com as outras raparigas,
Pelas tardes de verão;

Andava a brincar na praia,
E a espreitar de quando em quando:
Os hombros nús, mais que os hombros...
Emfim, co'as ondas folgando.

N'isto vinham os rapazes
Mas o cabello era tanto.
Que sacudia a cabeça,
E servia-lhe de manto!

Ao amado da sua alma
Deu ella um dia, em secreto.
Um annel d'esses cabellos.
Penhor de sagrado affecto!

E elle, cheio de alvoroço,
Sem hesitar um momento,
Para pagar-lhe a fineza,
Foi pedil-a em casamento.

Fundíam-se aquellas almas
Em celestiaes alegrias:
Ha dias do ceu na terra!
Eu creio que ha d'esses dias!

V

Uma tarde, era nas vésperas
De se fazerem as bodas,
Os pescadores na costa
Largavam as redes todas.

O ceu estava sereno;
Era propicia a estação:
Logo em entradas de outono,
Dias como de verão.

Porém o vento levanta-se!
E quando menos se espera.
Seja verão, seja outono,
Seja inverno ou primavera.

Daniel, deixando os outros,
Com a companha a seu cargo,
Fez-se ao mar, largando as artes
A duas léguas de largo.

O peixe dava em cardumes;
Lidando não attentaram
No aspecto de certas nuvens
Que no ceu se agglomeraram. 

Dentro de pouco os relâmpagos
Nos ares a fuzilar,
E o vento a picar as ondas,
E as ondas a rebentar!

Podiam correr á popa,
Mas não sem todo o cuidado,
Que á popa, em caindo tempo,
É navegar arriscado.

A vela posta nos rizes
— O vendaval carregava —
Como um falcão corta os ares,
O barco as. ondas cortava!

Amparo, sobre um penhasco.
De mãos. postas a resar:
A morte no arfar do seio,
Ancias de morte no olhar

Elles já perto da costa,
E o povo junto a dizer:
«Se o barco vem aos cachopos
Só Deus lhes pode valer!»

Tentaram fazer-se ao largo,
Luctando co'a morte a braços;
Mas deram sobre os rochedos,
E o barco fez-se em pedaços!

Salvou-se toda a companha.
Daniel inda se ouviu 
Bradar: — «Ó Virgem do Amparo!»
E nisto não mais se viu...

A noiva soltara um grito;
Mas quem lhe fôra acudir,
Vira-lhe o rosto sereno,
E até a bocca a sorrir!

Aquelle grito estalara-Ihe
As fibras do coração
E a infeliz, nesse momento,
Tinha perdido a razão!

VI 

Passados dias, Amparo
Puiha-se á beira do mar,
A olhar — como quem espera
Por alguém que hade voltar!

E os que passavam ouviam-lhe,
Sem que ella desse por tal,
Repetir estas palavras
D'uma tristeasa mortal:

«Devem cumprir-se os pedidos
D'aquelles que vão morrer;
Uma só coisa te peço,
— Mas que tu me has de fazer:

«Se passares pelo adro.
No dia do meu enterro,
Pede á terra que não gaste
As tranças do meu cabello.»

E depois, soltando as tranças
A larga brisa do mar,
Repetia inda estes versos,
E desatava a chorar!

Janeiro, 1871 (1)


(1) Bulhão Pato, Cantos e satyras, Lisboa, Rolland & Semiond, 1873

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