quinta-feira, 30 de abril de 2020

Bulhão Pato por Camillo Castello Branco

Raymundo de Bulhão Pato foi hontem á caça, e vai bater os montados frequentes vezes.

Bulhão Pato (1828-1912)
(insp. Andy Warhol, Ten Lizes, 1963)

Sabes tu que o prazer cruento de matar as innocentinhas filhas das florestas— as mansissimas aves nascidas com a nossa especie na mesma semana da creação, e aviventadas ao mesmo "fiat" do Senhor = não é que move o poeta a ir saborear-se no selvagem deleite de erguer da terra uma codorniz ensanguentada e arquejante?

Não é, decerto.

Bastar-me-ia a duvida para eu lhe não envejar o seu ruim sentir; e logo protestar, em nome das candidas almas dos sinceros poetas, contra quem os injuriasse, dando ao matador de avesinhas um titulo, que obriga a brandura, dó, sentimentos meigos, amor a tudo, e incapacidade de causar dôr a fôlego vivo.

Bulhão Pato, com certeza, não é caçador por vangloria de radicar sua genealogia em Nemrod.

Caçador de almas é que elle é o doce poeta. Por amor á regeneradora poesia dos campos, das agulhas das montanhas, dos ribeiros que serpeam ás abas das collinas, dos presbyterios, da toada saudosa dos sinos gementes de quebrada em quebrada, por tudo isto, que é o remanso dos animos agitados em vertigens d'esta vida doentia de Lisboa, é que o nosso Bulhão Pato se vai ás serras, de espingarda, polvorinho e rêde, a dar azas á inspiração, e não a quebral-as ás povoadoras do céo, que por lá o ajudam a cadenciar as suas melodias. Se isto assim não é, quero e preciso que seja assim.

Observa tu, Ernesto, que a poesia de Bulhão Pato prima em enfeitar-se com as galas antigas dos amantes da natureza; porém, as boninas, os tomilhos, as verbenas, as madresilvas sabe elle entrançal-as de geito que parecem novas as coroas, e mais encanta dores os matizes.

A cada pagina d'este seu affectuoso livro [v. Versos] encontras uma e muitas imagens campezinas: nem uma só poesia, que te não rebrilhe aljofrada pelos orvalhos da aurora, ou colorada pelos arreboes do crepusculo. Onde aprendeu o poeta a combinação das cores, que mais aprimoram os breves, mas tão peregrinos pai neis d'esta sua galeria ? Foi lá, na aldeia, na encosta, na esplainada, nos fragoêdos, onde, em vez de bandos estridentes de perdizes, lhe sáem os serenos e amantissimos genios a offertar-lhe abadas de flores.

Olha tu esta primeira poesia, que é um mimo de dulcissimo sentimento a Helena, por quem e para quem foi feito o livro. Verás que o poeta colheu da arvore bemdita da saudade os grãos do incenso, que vaporam de quantas poesias ahi vês, avocando o co ração ás passadas alegrias do campo.

É a recordação de um lance infinitamente mavioso. Helena e o poeta vão subindo a elevada encosta :

Chegara o fim do outono : a natureza, 
Sem ter os mimos da estação festiva,
Nem aquelle esplendor e gentileza
Que tem na quadra estiva
Na languida tristeza,
Na luz branda e serena
D 'aquelle ameno dia,
Que immensa poesia,
E que saudade respirava, Helena !

Helena, no dia natalicio dos seus vinte annos, vai levar "os dons do lar paterno" á sua serva entrevada,

Áquella pobre ancian que se agarrava 
Aos restos d' esta vida !

A mão alvissima do anjo da caridade entre as mãos crestadas da enferma, produzia

Effeito similhante
Ao que, por entre o mato,
Produziria a rosa de Benguela,
Á flôr mais alva, e de mais fino trato!

Choravam ambas, a consoladora, e a velhinha do casalejo da serra. Vê tu esta selecta e brevè su blimidade de uma comparação :

Como orvalhos do céo aquelles prantos, 
Um brilhava na hera das ruínas, 
Outro na flor de festivaes encantos, 
Na rosa das campinas.

Este doce cantico, doirado pelo sol que alumiava felizes dias, triste como tudo que não olha a esperanças, mas, assim mesmo, cheio de coração, fecha assim a introducção do livro:

D'aquelle dia
E de outros dias de intimas venturas,
De immensa poesia,
Nasceram essas paginas obscuras
Que hoje a teus pés deponho
Como saudoso emblema
Do tempo em que sorria
O nosso bello sonho !
Terias um poema,
Se tão gratas mémorias
Podessem ser cantados n'uma lyra
Votada a eternas glorias !
Emfim: se um pensamento, 
Se uma singela idéa onde transpire 
O perfume de vivo sentimento, 
N'estas folhas traçar a minha penna... 
A estrofe, o canto que o leitor admire,
Seja o teu nome, Helena !

Bulhão Pato foi entre os poetas, que ainda hoje representam a escola romantica, o que mais cedo floriu, e mais depressa grangeou fama. Como a amendoeira, a mais louçã e mais temporã a vestir-se das galas da primavera, a creança de ha quinze annos, já tão celebrada em seus primeiros versos, dava a recear que os germens precoces não vingassem, como acontece áquella arvore, aberta em flores ao sol tépido de fevereiro [v. Se coras, não conto].

Nos sertões do norte, onde chega raro som das lyras de Lisboa, repetiam as damas com a graça que lhes ensinava a infantil musa de Bulhão Pato aquelle mimoso conto, que principia assim :

Tu queres que eu conte um sonho que tive 
Não sei se acordado, não sei se a dormir ? 
Foi todo singelo, foi todo innocente : 
Tu coras, sorriste, tens medo de ouvir ?

Não cores, escuta...

E as circumspectas mães de familia escutavam o sonho do poeta, desejando talvez que suas filhas encontrassem quem as amasse com igual respeito, e as beijasse com quanta innocencia os beijos sonhados presumo eu que tem.

Bulhão Pato estiara algum tanto no fervor com que se dera a conhecer e bem querer do publico. Algumas poesias, leves, mas de lindissimas azas, lhe voavam do coração á pagina do jornal litterario, ou (que indigna paragem!) ao folhetim do libello politico ! Isto, porém, era pouquissimo para o muito que o poeta promettêra.

As melhores primaveras iam passando, silenciosas, tristes, sem regorgeio de aves, sem aquella abundância das primeiras flores, bem que o aroma as relembrasse.

Correu a boa nova de um poema de Bulhão Pato; e logo o snr. Alexandre Herculano prefaciou o primeiro canto com louvores muito de obrigarem o poeta a desvelar as noites de mezes e annos, invocando e esperando a liberal inspiração, que tão donosa e esbelta lhe segredára as primeiras estancias da Paquita [v. Paquita].

O talentoso moço estava n'uma idade em que os milagres do estudo e do recolhimento só póde operal-os a cubiça de renome.

O temperamento de Bulhão Pato é indocil até ao estimulo da gloria. Carece aquella alma de andar ás soltas folheando o livro da natureza, cujas paginas raro se abrem, nos seus mais formosos capitulos, áquelles que a estudam no gabinete incansavelmente. 

Assim é, e sublime deve ser o ir-se o espirito por esse azul do céo além, por essa prata fora das ondas lampejantes, por esses verdes copados das florestas, por tudo em que a alma se está como en leada, scismadora, e celestialmente melancolica. 

Tudo isto accende engenhos e os desabrocha em poemas; mas, se o remanso da solidão não segue o devanear inquieto do espirito, quer-me parecer que o melhor desses embrionarios poemas lá lhe fica enthesoura- do, incommunicavel e inexprimivel. O que, de passagem, n'um intervallo quieto de seus enlevos, o poeta nos dá, é escassamente a sombra das imagens de suas delicias ou tristezas.

Camillo Castello Branco (1825-1890)

Dou, como exemplo, se algum ha que valha a prova d'este meu juiso, o que ahi está impresso de Bulhão Pato n'este livro dos seus versos.

Que nos está dizendo esta formosa cadeia de canções amorosas, umas amor, outras caridade, ou tras lagrimas, todas, porém, coração ? Não sei eu vêr e sentir bem estes versos, se aqui não ha a poesia mais espontanea, a mais santa, a mais á flor da alma!

Começou na alvorada da vida aquelle sensitivo engenho a tecer a sua coroa de flores; depois entrançou-lhe murtas, e cyprestes, os emblemas todos das vicissitudes de uma existencia de trinta e tres annos.

A grinalda ahi está: é assim que os grandes poetas, desprendidos das mesquinhas affeições, se coroam, uns com maior feixe de flores, outros com uma só de cada especie; mas, lá na ideal craveira do sentimento, os espiritos de Bulhão Pato pairaram na altura onde subiram os mais remontados cantores.

A differença está em que Lamartine escrevia uma ode de duzentos versos bafejados pela inspiração de Bulhão Pato : isto procede de que o poeta de Elvira se dava oito horas de recesso no seu gabinete; e Bulhão Pato escrevia a lapis, na sua carteira, em oito minutos, a sua commoção, em quanto a vehemencia o arrobava. 

Não hei de eu por isso acoimal-o de esteril, de indolente, nem sequer de descultivador do seu muito engenho. Bulhão Pato é assim. Pedissem lá a Anacreonte que estirasse as suas pequenas lyricas, que elle rejeitaria a immortalidade a preço da gloria de difuso metrificador.

Está em pleito agora uma contenda, que, a meu vêr, não terá solução alguma, que preste um capitulo mais á historia do espirito humano.

Dizem litteratos de grande porte, e dos mais celebrados em França, que a poesia não pôde continuar n'esta rota que tem trazido desde que os poetas, mais ou menos adstrictos ao ideal do coração, se se questram das turbas, empinando-se em uns phantasiosos e altissimos mundos d'onde não podem chover pão e carne sobre a humanidade. Um diz que a "poesia formulada, e medida, a poesia em verso está por pouco" (palavras da sublime refutação de Castilho em desaccordo com Pelletan.)

Outro quer que o poeta se gose do seu ideal; mas ideal elevado, vivente, chamado virtude, religião, moral.

D'aqui surde o prescreverem ao poeta "deveres."

Ha de o poeta, portanto, discorrer em philosophias, emendar a viciosa conformação social com leis de trabalho, jarretar as garras á fome, alvitrar o melhor modo de vestir os nús, quebrar algemas de escravos, e conglobar, emfim, as miserias da humanidade em um ideal perfectivel, onde todo se funda o seu engenho, quer chorando, quer imprecando, quer fulminando.

Sublime desejo !

O poeta, na sonhada vespera de uma transformação social, seria o Baptista, o precursor do segundo Christo. Renasceria n'elle o espirito dos prophetas que armunciaram aos carnifices do mundo romano a redempção das victimas.

E para em tudo se honrarem com a igualdade dos destinos e proposito da comparação, quebrariam o braço, como os prophetas, na roda inquieta e indomavel da má fortuna, que arbitra o modo de ser da humanidade !

Deixar lá com os seus esplendentes paradoxos a França.

António Feliciano de Castilho (1800-1875)

Cá temos o maximo poeta, o poeta das lagrimas, das flores, dos infelizes, e das creanças, a luz vivida d'estes descoloridos tempos, o thesouro insubmergivel n'este pelago de borrascas revoltas, cá temos o nosso Castilho mostrando a olhos de todos o sacro lume, e aquecendo com elle os animos intanguidos. É elle que diz:

"... De sobejos annos a esta parte refervemos todos n'uma continuada revolução, ora tempestuosa e á superficie, ora surda e recondita, ora tenebrosa, ora resplandecente. É uma fermentação geral, que não se interrompe; é um revolutear insoffrido de todos e cada um ás portas cerradas do porvir." 

"Nestes momentos de absorpção, de preoccupações, de incerteza, até os bardos se fazem obreiros, peleja dores, intrigantes, covardes, ou scepticos; se algures se conserva a poesia é nas creancinhas e nos pas saros..."

Ah ! aqui, meu querido mestre, foi V. Ex.a menos condoido das dores que ahi vão no seio dos poetas silenciosos, dos poetas, que passaram das alphombras dos jardins ao regêlo das abobadas das secretarias. Eram pobres avesinhas que não acharam no eirado dos fazendeiros um grão esquecido da feracissima colheita, que os taes fazendeiros grangeavam com egoista e muitas vezes infame labutar e suar. 

Que haviam de fazer elles, os cantores do céo, se não baixarem aos telhados das secretarias, e espreitarem azo de impoleirarem-se no poleiro das pessoas graves, bem jantadas, bem calçadas, bem vestidas, e bem aco lhidas nos festins dos proceres, onde, hoje em dia, nem o lacrimoso Tolentino ganharia perna de peru? 

Pobres poetas callados ! se elles continuassem a cantar, até os tendeiros se fariam formigas para lhes dizerem o desdenhoso palavriado que a faminta cigarra ouviu, corada até ás orelhas, se a amarellidão da fome a deixava corar !

E, depois, estes poetas perderam a fé em si, e no seu apostolado, quando viram o proprio Victor Hugo duvidar de sua missão reformadora, exclamando :

Cest peut-être le soir qu'on prend pour une aurore.
Peut-étre ce soleil vers qui 1'homme est penchê,
Ce soleil qu'on appelle á l'horison qu'il dore,
Ce soleil qu'on espère est un soleil couché.

Fieis á poesia, áquella virgem meiga e triste que se esconde entre moitas de flores para não vêr nem ser vista, são por certo aquelles que dariam tres partes da vida por terem em cada dia do seu curto praso uma hora como todas as horas de Antonio Feliciano de Castilho.

Aquelles, porém, que, á imitação de Raymundo de Bulhão Pato, empedrenidos no meio d'este acerbo mundo que lhes está giando sempre o desgosto, ainda recebem em cheio peito um raio de luz, e estremecem, e se apaixonam, e se abrem n'uma torrente de ira ou amor, de supplica ou de sarcasmo, estes não são os poetas silenciosos; são os que, de espaço a espaço, conseguem diluir em lagrimas o fél do intransitivo calix do talento.

Lá mesmo em, Tibur, não é bem amargo o calix de Castilho?...

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Adeus, Ernesto.

Havia de fallar-te hoje d'um livro de Antonio Augusto Teixeira de Vasconcellos, conforme te prometti; mas tu, de certo, destinas as restantes paginas do teu jornal a assumptos mais de se lerem. 

Será no seguinte numero.

Os teus leitores são bons e pacientes; mas tambem querem não ser tentados a perderem aquellas excellentes qualidades.

Lisboa — 1863. (1)


(1) Camillo Castello Branco, Esboços de apreciações litterarias, Porto, Em casa da viúva Moré, 1865

Leitura relacionada:
Versos
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Paquita

Tema:
Bulhão Pato (em Mar de Caparica) 
Bulhão Pato (em Almada Virtual Museum)

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