quinta-feira, 20 de maio de 2021

Barco da xávega de mestre Gadelha

O último dos últimos, agora está esgotadíssimo — disse-me o Manuel Mão de Ferro das Edições Colibri referindo o livro de Manuel Fidalgo, Barco da Xávega, Tecnologia da sua Construção, que eu acabara de comprar — e acrescentou — este fui buscá-lo à estante do editor.

Costa da Caparica, colecção Passaporte, s/n.
Delcampe

O livro, publicado em 2000, é um ensaio antropológico que, entre múltiplas abordagens e referências, documenta a construção do barco de mar da xávega. O barco é assim conhecido no areal da costa marítima portuguesa que vai de Espinho a Vieira de Leiria. Xávega é o aparelho de pesca, ou arte, que lhe dá o nome.

As sucessivas etapas de construção, detalhadas no ensaio, suportam-se no conhecimento e experiência de dois mestres construtores que nos respectivos estaleiros dão o risco a estas embarcações, mestre Esteves do Pardilhó, Estarreja, e mestre Gadelha do Seixo, Mira.

Mestre Gadelha no estaleiro do Seixo segura o pau dos pontos.
Ricardo Salomão

Como refere o Ricardo Salomão da Associação Gandaia, foi a mestre Gadelha que a "A Mar A Costa" recorreu para que um meia-lua da Costa da Caparica fosse contruído, penso que, com o objectivo de dar a conhecer aos visitantes da cidade e da praia o tipo de embarcação e de algum modo preservar a identidade cultural dos pescadores.

Só quem viu os meia-lua em actividade salpicados de sal nas cavas das ondas, no vozeiral das arribadas, ou adormecidos ao sol no areal, pode compreender o entusiasmo de tais empreendimentos e, porventura, esquecer histórias que se repetem.

O Cabo Espichel, foi um meia-lua que vários anos esteve exposto no areal à entrada da praia junto às barracas dos trafos e abrigos que no verão eram alugadas à "malta" que queria passar uns tempos na praia.

O Cabo Espichel junto aos antigos palheiros na Costa da Caparica.
almadalmada

Apalavrava-se com o pescador, estabelecia-se a confiança, paga-se o período desejado, ficava-se com a chave. Trafos por debaixo do estrado, uma manta por cima deste, casa de férias de porta aberta com hóspedes presentes.

Enquanto aí estiveram as barracas o Cabo Espichel perdurou, pois sempre que necessitava de um pequeno reparo alguém lhe jogava a mão, mantendo-se assim o imponente cartaz de visita, branco e vermelho, boca larga quando comparado com outros, destacando-se no colorido das barracas e palheiros.

Quando a municipalidade resolveu intervir no ordenamento da frente marítima, para evidenciar o betão dos prédios, as barracas desapareceram e o Cabo Espichel, depois de atravessar a rua, ficou tristemente asilado junto à entrada dum edifício.

O betão e o areal nunca ligaram bem. É como a estupidez, só tem graça em pequenas doses.

O areal aceita bem os palheiros, as plantas das dunas, o mar, a linha do comboio turístico e, para além dos barcos que nele varam, pouco mais.

Não mais vi o Cabo Espichel. Foi talvez a embarcação destruída por um acidente rodoviário na rotunda das av.enidas Dr. Aresta Branco/Afonso de Albuquerque, mas que interessa isso, um acidente de estrada é um fim triste e indigno para um qualquer barco.

Na sequência desse acontecimento a Junta de Freguesia, atenta, para consolo dos caparicanos, resolve no local naufragar um barco da xávega de Mira... o que eventualmente provocou comentários — eh pá, a coisa vista de frente a três quartos até passa — passa nada pá — e o olho, o olho tem miopia.

Barco da xávega de Mira exposto na Costa da Caparica.
O Mistério do Barco Desaparecido


A "A Mar A Costa" apoiada pela Gandaia, encomendou a mestre Gadelha um meia-lua da Costa da Caparica. O barco, de Mira,  é um barco em Mira mas na Costa não faz sentido [v. Notícias da Gandaia, 22 de fevereiro 2013: Meia Lua e Barco de Mar: parecidos mas diferentes].

Em cima: barco meia-lua da "A Mar A Costa".
Em baixo: barco da xávega de Mira.
Notícias da Gandaia

Para o efeito e risco da construção, o representante da associação, o benemérito que pagaria o barco, um pescador da Costa e Ricardo Salomão apresentaram-se a mestre Gadelha com um enganoso opúsculo editado pela Junta Distrital de Setúbal em 1969, J. A. Neves Cabral, Meia-lua da Costa da Caparica, ao que o experiente mestre se contrapõe, já que o barco não poderia ser construido com essas indicações, porque não poderia navegar.



Foi então o grupo com mestre Gadelha ao Museu de Marinha, ver o Há-de ser o que Deus quiser  e a partir daí lá pode construir a embarcação encomendada para ser exposta na Costa da Caparica.

Meia lua da Costa da Caparica, "Ha-de ser o que Deus Quiser".
Construido em 1946.
Revista da Armada

Sabendo que o  Há-de ser o que Deus quiser  é o refinamento da construção dos meia-lua da Costa da Caparica naquelas dimensōes, poderia perguntar-me, se o mestre Gadelha não tivesse acedido aos desenhos de J. A. Neves Cabral, o risco da embarcação não teria sido outro. Menos Mira.

J. A. Neves Cabral, Meia-Lua da Costa de Caparica...,
Junta Distrital de Setúbal, 1969

Poderia pensar que se a base partisse de outro plano, como o do Sempre vim, que até é da Costa Norte, o resultado não teria sido mais Caparica.

Saveiro da costa norte, "Sempre vim", 1920.
Museu de Marinha

Mas que interessa isso hoje, a embarcação "A Mar A Costa" talvez já não exista. Mestre Gadelha cumpriu e todos cumpriram. Entregue no vermelho primário, foi pintado nas cores de um parente afastado num conhecido postal.

O barco "A Mar A Costa" à falta da companhia das barracas e palheiros definhou à míngua de atenção e do embalo das ondas, encharcado pela chuva, não tendo sequer provado na água prateada do oceano [v. Notícias da Gandaia, 30 de julho 2014: Meia-Lua a Degradar-se].

Notícias da Gandaia


Melhor, talvez, teria sido como fez o sr Robert Gulbenkian nos jardins da casa Ararat, na Quinta dos Medos, falésia da Praia do Rei, o Noé, meia-lua em cimento e betão. O betão, preferencialmente em quantidades reduzidas [v. Notícias da Gandaia, 5 de novembro, 2012: Um Meia-Lua Original?].

Barco meia-lua Noé, Casa Ararat, Quinta dos Medos.
Notícias da Gandaia

 Rui Granadeiro, 20 de maio, 2021


Mais informação:
Fez-se História!
Ricardo Salomão
A Mar A Costa (fb): Regresso do Meia-Lua
A Mar A Costa (fb): 2011 Inauguração Saveiro Meia-Lua Costa Caparicano

Leitura relacionada:
O povo das dunas
Manuel Fidalgo, Barco da Xávega, Tecnologia da sua Construção, Lisboa, Edições Colibri e Inatel, 2000

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