quinta-feira, 9 de junho de 2022

Praia da Tocha (dita Palheiros da Tocha)

Neste mar e nestes areais apenas uma actividade é possível (...) a pesca — e praticamente apenas o arrasto para terra, ou seja, a xávega, com exclusão de todas as outras categorias que as águas abrigadas do Norte (para lá de Espinho) consentem (e que, por outro lado, é impraticável naquele litoral de rochedos esparsos) , e um único tipo de barco o grande barco do mar ou de meia-lua (...)

Algumas fotografias dos painéis de azulejos existentes na Capela da Praia da Tocha (tiradas em Julho de 2007), que retratam cenas da antiga Arte Xávega que se praticava nesta localidade. Estes azulejos, baseados em fotografias antigas, foram pintados pelo Sr. Jorge Guerra, artista especializado neste tipo de trabalhos (...) mostra o transporte de um barco de pesca recém-construído para a Praia da Tocha. Vários dos barcos que aí se utilizaram até meados do século XX, foram construídos num estaleiro artesanal que se situava na parte Noroeste do Largo da Tocha, na zona situada entre a Igreja e a Casa Paroquial
cf. Visões da Gândara

No interior do barco, tudo bancos, estribeiras, pranchas, etc. é perfeitamente adaptado à sua função essencial, numa estrita economia de espaço, que se foi ajustando à complexa coordenação dos actos da pesca. Cada membro da tripulação tem o seu lugar, e a rede vai arrumada segundo preceitos lógicos rigorosos e sempre os mesmos; no fundo o cabo terminal e a manga, seguida do saco, que passa em volta da popa; depois a primeira manga, cortiças de um lado, chumbos do outro bem alinhados; e finalmente a outra manga e o cabo inicial de modo a permitir o seu lançamento conveniente e desembaraçado.

Arte Xávega na Praia da Tocha em 1965.
Praia da Tocha no facebook

O barco sai deixando em terra a ponta desse cabo inicial a mão-de-terra , a qual se vai desenrolando de bordo à medida que o barco se afasta, até ao ponto que ao arrais pareça conveniente para cercar, geralmente a 2 quilómetros da costa; o barco então vira, à ordem gritada do arrais; e, pelo calador ajudado por um dos remadores da ré, a primeira manga é lançada já paralelamente à costa, até que, « Com Deus ao mar ! », se atira o saco; depois segue a outra manga; depois o grito terra, e é o regresso, largando-se de modo idêntico o segundo cabo, a mão-da-barca, cuja ponta chega à praia com o barco (...)



Durante duas ou três horas, num vaivém permanente e monótono na praia deserta momentaneamente, o gado – ou o pessoal de terra – puxa os cabos, balizados por cadimes, até que se avista o saco que se aproxima e finalmente chega, palpitante de pescado, no meio de uma desordem aparente e de uma corrida confusa de gado e gente, na qual, contudo, cada um está a cumprir um lugar necessário no conjunto, perante a expectativa da companha, do fisco, dos negociantes.

O barco característico da xávega tem sido considerado de origem mourisca, e difundido a partir do Algarve tal como, de resto, o próprio nome da arte. Jaime Cortesão aproxima-o do barco que se vê nas iluminuras do manuscrito escurialense das Cantigas de Santa Maria (v. Cantigas de Santa Maria 183) que representam o milagre acontecido aos pescadores de Faro, quando essa localidade estava em poder dos Mouros; e, «da permanência do tipo de barco e da palavra que o designa», conclui pela provável existência, no século xii, de pequenos povoados de pescadores mouros e moçárabes que praticariam a xávega nos nossos litorais.


Octávio Filgueiras (Octávio Lixa Filgueiras, Barcos de Portugal, obras selecionadas) vai mais longe, atribuindo ao nosso barco do mar uma remotíssima origem mesopotâmica (pela sua comparação com a barca de prata encontrada em Ur) : introduzido entre nós pelos Árabes, na costa algarvia, ele teria irradiado daí para o Norte, com o tipo de pesca que lhe está associado (« com fortes aculturações na época dos Descobrimentos ») polarizando-se na zona central do País, onde as suas características respondem eminentemente às condições naturais da área, provavelmente em Ilhavo (e podemos supor também que em Ovar e na Murtosa
nos locais abrigados do estuário do Vouga e talvez em Vieira), donde mais tarde se expande para o Norte e para o Sul, com as andanças desses pioneiros ilhos, varinos e murtoseiros, que enxamearam toda a costa portuguesa e cujos descendentes vamos encontrar com os barcos, redes, formas de viver e até por vezes tipos de casas dos seus antepassados do Douro a Santo André.

Praia da Tocha, pequeno barco do mar junto aos palheiros.
Praia da Tocha no facebook

Até tempos muito recentes, este litoral era praticamente vazio de estabelecimentos humanos qualificados, antigos e definidos, que se encontravam apenas para lá das referidas dunas. Entre largos lanços de praia totalmente desertos, adensavam-se pequenos grupos de casario escuro, compostos então unicamente de palheiros de tabuado, dispersos no areal e mais tarde alinhados em arruamentos mais ou menos regulares, onde se instalavam, durante a época da safra, as gentes de outros lados, de entrada sobretudo de Ovar e Ílhavo, e seguidamente dos núcleos interiores próximos, que aí vinham pescar na época da safra, atraídos pela abundância da sardinha nestes mares, e que regressavam às suas casas no fim da temporada, em Novembro.

Praia da Tocha, Palheiros e habitantes locais ao pôr-do-sol, ed. Supercor.
Delcampe

Durante esse período, mas apenas durante esse período, estes locais, passados naturalmente os seus obscuros primórdios e desbravada a duna deserta, conheciam uma extraordinária animação... (1)

Saída para o mar.
Algumas fotografias dos painéis de azulejos existentes na Capela da Praia da Tocha (tiradas em Julho de 2007), que retratam cenas da antiga Arte Xávega que se praticava nesta localidade. Estes azulejos, baseados em fotografias antigas, foram pintados pelo Sr. Jorge Guerra, artista especializado neste tipo de trabalhos

cf. Visões da Gândara

Uma lenda curiosa, relacionada com a origem da povoação da Tocha, é certamente prova da baixa densidade demográfica da região no passado; segundo ela, um fidalgo galego, vendo-se um dia em situação angustiosa, prometeu a Nossa Senhora (da Atocha) elevar-lhe um templo no lugar mais ermo que encontrasse; levado nas suas andanças até à região gandaresa, não teve o fidalgo dúvida de que nenhum ponto podia ser mais próprio do que aquele para o cumprimento da sua promessa, e por isso edificou uma ermida no local onde actualmente se ergue a igreja da Tocha (...) (2)


(1) Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, Arquitectura Tradicional Portuguesa
(2) Idem

Mais informação:
Os antigos Palheiros da Praia da Tocha!
Freguesia de Tocha (arte xávega)

Leitura adicional:
Henrique Souto, Comunidades de pesca artesanal na costa portuguesa... 1998
Maria João Marques, Arte Xávega em Portugal

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