terça-feira, 14 de junho de 2022

A sul da Costa Nova do Prado: a Vagueira, a Barra e a Gafanha

A barra de Aveiro era extremamente móvel, tomando sempre o rumo do Sul; em apenas duas décadas, desde a tentativa da sua fixação perto da Vagueira por João Iseppi, arquitecto hidráulico italiano que dirigiu as obras no início dos anos oitenta (1780-1781), o cordão dunar tinha avançado mais de 4 km para Sul, estando a barra próxima de Mira e a cerca de 24 km da cidade de Aveiro (...) (1)

Planta do projecto que se esta executando para a nova abertura da Barra do Rio Vouga por Ordem de SAR o PRNS.
Extracto do Mappa geral Hydrographico da embocadura do Vouga, e da Ria ou Lago do mesmo nome. Copiado no Real, e Geral Depozito das cartas Marítimas, Militares, em 1802...
O Programa de Obras Públicas para o Território de Portugal Continental, 1789-1809, vol. I

Em 1863 obstruiu-se a barra da Vagueira, do que resultou grande vantagem para as condições do canal, deixando de haver, entre Aveiro e Mira, comunicação com o mar. Onde fôra out'rora a barra chamada da Vagueira, há hoje uma praia de banhos. (2)


Para o sul da Costa Nova, próximo da antiga barra da Vagueira, hoje totalmente obstruída, existe o porto de pesca do Arião (Areão) onde se exerce unicamente a pesca costeira (1886)... (3)


Costa-Nova (embarcação da Vagueira), 1984.
Postal de Paulo Miguel Godinho cf. Ana Maria Lopes, Marintimidades

A praia da Vagueira é outro dos locais onde a xávega possui, ainda hoje, grande importância, tendo nela trabalhado seis companhas em 1997, com a particularidade de duas delas utilizarem para além dos tractores uma junta de bois.

Pêche artisanale à Vagueira, Rota da Luz, Costa de Prata, Barque attelages de boeufs, 1991.
Delcampe

A área da Gafanha (v. Nome da Gafanha), na qual se insere esta praia, com o seu peculiar povoamento alongado e periférico, associou desde sempre a pesca â agricultura, numa complementaridade quase perfeita, sendo ainda hoje possível encontrar patrôes de xávega agricultores e com uma longa tradigão familiar na pesca da xávega (v. Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e Benjamin Pereira, A pesca do pilado, Actividades agro-marítimas em Portugal).

Vagueira (Vagos), ambiente da pesca à xàvega, fotografia de Maurício Abreu, 1989.
Delcampe Oliveira

O Padre João Vieira Rezende, na sua Monografia da Gafanha (1944), diz que Gafanha é "tôda a região arenosa dos concelhos de Ílhavo e Vagos com cêrca de 25 quilômetros de comprimento por 5 de largura, abracada do Norte ao Sul (lado poente) pelo rio Mira e do Norte ao Sul (lado nascente) pelo rio Boco, afluentes da Ria-de-Aveiro, e confinando pelo Sul com uma linha que, saindo dos Cardais de Vagos,vai fechar ao Norte do lugar do Pogo-da-Cruz, freguesia de Mira.

Praia da Vagueira, arte xávega, barco de mar.
Delcampe

Pela identidade da sua origem, topografia, condigôes de vida, costumes, etc, consideramos como uma continuagão da Gafanha a duna situada naqueles dois concelhos, entre o Oceano e a Ria." (4)

Praia da Vagueira, Ponte sobre a Ria, ed. Supercor.
Aveiro e Cultura


(1) O Programa de Obras Públicas para o Território de Portugal Continental, 1789-1809, vol. I
(2) Revista de Turismo n° 95 e 96, junho de 1920
(3) Arthur Baldaque da Silva, Estado actual das pescas em Portugal: comprehendendo a pesca maritima... 1886
(4) Henrique Souto, Comunidades de pesca artesanal na costa portuguesa... 1998

Artigo relacionado:
Ílhavos

Mais informação:
Alfredo Pinheiro Marques, A arte-xávega da Beira Litoral e as suas embarcações, Revista da Armada n° 555, setembro-outubro de 2000

Barco de Mar ou Xávega (com imagens da Costa Nova)

Fácil se torna entender que a arte de pesca empreste o seu nome ao barco com que ela se exercita. Com efeito, assim acontece no caso do barco de mar, que é utilizado na xávega, na nossa costa ocidental atlântica, desde Espinho até Vieira de Leiria, ao qual os pescadores também chamam, tão simplesmente, de o xávega.

Difícil se me torna, todavia, chamar ao nosso barco de mar de saveiro, como vejo acontecer, por eexmplo, no Dicionário da Linguagem de Marinha Antiga e Actual, obra rigorosa do comandante Humberto Leitão e que constitui o mais completo elucidário da especialidade existente em Portugal. Com efeito, nele se define saveiro como embarcação de fundo chato, com as formas semelhantes às do meia-lua, havendo por diferença principal ter a proa mais erguida que a popa.

Os saveiros (...) não se afastam da costa e servem, especialmente, para conduzir as redes, que são lançadas em frente da praia.

Saveiro também chama ao barco de mar o arqueólogo Octávio Lixa Filgueiras, no seu trabalho The Xavega-Boat, a case-study in the integration of archaeological and ethnological data, apresentado, em Setembro de 1976, num simpósio levado a cabo no Museu Marítimo Nacional, em Greenwich, subordinado ao terra genérico de, traduzo, Origens e Técnicas na Arqueologia de Barcos.


Mas saveiro será, já, tão somente, a nossa bateira de mar, bem distinta do barco de mar na sua forma, se bem que não totalmente na sua função e uso, aos olhos dos especialistas, D. Manuel de Castello Branco (Embarcações e Artes de Pesca, Lxª, 1981) e Domingos José de Castro, na obra que já citámos no início (Aveiro – Pescadores, Instituto para a Alta Cultura, 1943).

Este etnógrafo define o barco de mar como "aparentemente desprovido de solidez (...), de bicas exageradamente alteadas (...), mas que, na realidade, possui um jogo de características especiais que parece explicar as condições que o apropriam à função marítima que lhe é atribuída.

Precisamente porque tem de oferecer às ondas a menor resistência para as galgar de pronto, mal assente na água, como o descreve Raul Brandão (Os Pescadores, Paris, Ailland, 1923, 326 págs, 127,7 MB), este barco conjuga o seu formato, semelhante a um crescente, com o sistema planiforme de fundo, condições estas que lhe permitem, pela falta de portos de abrigo, o acesso directamente do areal para o mar e vice-versa, e suportar com mais facilidade, pela elevação pronunciada dos castelos da proa e da ré, a violência da pancada do mar, ou quebra das ondas, na manobra arriscada da travessia da faixa de rebentação, geralmente forte, no litoral de areia que se delimita, a norte, nas primeiras rochas de Miramar e, a sul, ultrapassando o Cabo Mondego, nas areias da praia de Vieira de Leiria.

Raul Brandão compara-o com "o feitio côncavo do espaço que vai de vaga a vaga" – o seio da vaga, acrescentamos nós.


O barco grande de xávega é, ainda hoje, como sempre foi, construído de madeira de pinheiro, e tinha, nas construções em uso nos meados deste século, 16,5 m de fora a fora, 4,2 m de boca, 3,5 m de largura máxima de fundo entre costados e um pontal de 1,3 m. Deslocava cerca de 15,5 toneladas, calava cerca de 1 metro e tinha um esqueleto de 27 cavernas.

Ílhavo, O heróico Ançã olhando o mar ed. José Ruivo.
Delcampe Bosspostcard

O período de vida útil dum barco deste tipo era de cerca de 8 anos, desde que submetido a regulares tarefas de manutenção.

Desde os seus alvores, foi sempre um barco a remos, com grupos de 2 ou de 4 remos. No primeiro caso, os remos chamam-se: o de vante, remo-maião; o outro, remo-proa. Nos barcos de 4 remos, estes chamavam-se, de proa para a ré: remo-castelo-da-proa, remo-maião, remo-proa e remo-castelo-da-ré.

Preparando as redes na Costa Nova ed. Faustino António Martins, F A Martins, FAM, Martins e Silva, MS, fotografia original de Paulo Guedes & Saraiva, Ílhavo, 15, década de 1900.
Delcampe

No caso dos barcos de dois remos, a tripulação era de 34 homens e nos de 4 remos, 46 homens. Actualmente, a grande maioria, se não a totalidade dos barcos de mar, só tem 2 remos, usados nas manobras de largada e de chegada à praia.

São mais pequenos de porte e a sua propulsão, no lance da arte, é garantida por motores fora-de-borda, da ordem dos 40 cavalos, enxertados na rabada dos barcos. Quanto à origem destes barcos únicos na nossa costa, muito há que esclarecer.

Aveiro, Ílhavo, Costa Nova, Deitando um barco ao mar para a pesca, fotografia original de Paulo Guedes & Saraiva, década de 1900.
Delcampe

O nosso Rocha Madahil, no seu trabalho Barcos de Portugal, escreveu:

"Na Costa baixa entre Espinho e Mira fixou-se há muitos séculos outro tipo de barco de pesca, graciosíssimo, perfilado em crescente de lua, que mal aflora a vaga e vai a grandes distâncias, sem leme sequer, levado sempre pelos possantes remadores, que o empregam principalmente na pesca da sardinha.

Sahida dos barcos de pesca.
Delcampe

Por comparação da sua silhueta com o petróglifo de Häggeby, conseguimos determinar-lhe a ascendência normanda, dos Vikings, que utilizavam barcos assim para viagens de longo curso; do conhecimento da nossa costa por esses povos do Báltico não é lícito duvidar: documentos portugueses do século XI referem algumas das piratarias desses Laudomanes, e aprisionamento de populações das vizinhanças de Ovar, resgatadas, depois, por cabeças de gado, artefactos e moios de sal.

Cerca de dois séculos duraram essas piratarias dos normandos nas costas da Península, e nos nossos barcos do litoral vareiro ficou até ao presente a imagem viva dos seus transportes marítimos, que fizeram o terror dos nossos antepassados, mas que ofereciam notáveis condições de navegabilidade, ainda hoje não excedidas para as fainas da pesca local.

Esse mesmo tipo de barco, que supera em elegância qualquer outro da costa portuguesa, encontra-se em Lavos, ao sul do Mondego e na Caparica, onde o conhecem por saveiro ou meia-lua; ao norte, irradiou também para a Afurada e Lavadores; poucos mais anos durará."

Como se enganou Rocha Madahil neste vaticínio, como muito bem se prova com o renascer actual da arte de xávega...

cf. Gaspar Albino, Junta de Freguesia da Gafanha da Boa Hora
Leitura adicional:
Raul Brandão, Os Pescadores, Paris, Ailland, 1923, 326 págs, 127,7 MB
Adolpho Loureiro, Os portos maritimos de Portugal e ilhas adjacentes, 1904
Henrique Souto, Comunidades de pesca artesanal na costa portuguesa... 1998
Maria João Marques, Arte Xávega em Portugal

Sem comentários: