segunda-feira, 6 de junho de 2022

Praia da Costa de Lavos (o barco da sardinha)

Minha muito querida mãe,

Aproveitei a oportunidade duns momentos vagos para lhe escrever algumas linhas a dizer-lhe que estou perfeitamente bem, embora bastante fatigado e queimado por andar constantemente exposto ao sol e pela actividade que o meu conhecimento da língua e a nossa situação torna indispensavel (...) desembarcámos no primeiro deste mês (de agosto de 1808).

O desembarque do exército inglês na baía do Mondego (praia da Costa de Lavos) em agosto de 1808.
The Landing of the British Army at Mondego Bay, Henri l'Évêque.
Campaigns of the British Army...

Foram precisos três dias para o desembarque de todo o exército, e se de terra nos tivessem feito oposição, nós positivamente nunca o conseguiríamos ter efectuado tão grande é a ressaca tanto na costa como na barra (...) graças a Deus todo o exército desembarcou sem nenhuma perda, a não ser de um ou dois cavalos e agora ocupámos uma posição neste lugar, tendo à nossa esquerda a aldeia (de Figueira da Foz) e à direita o mar... (1)

Como dissemos (v. Bateira do Mar, o elo perdido), o barco usado na Costa de Lavos para a pesca do pilado tinha a mesma forma dos grandes barcos da xávega, com o fundo chato muito arqueado, e a proa e a ré muito erguidas, mas aquela avançando e subindo num movimento forte, extremamente bem lançado; e não tinha leme. É pois um dos barcos chamados geralmente de meia-lua.

Um barco da Sardinha e Pescadores da Costa de Lavos, Figueira da Foz, Portugal.
Delcampe


O seu comprimento rondava os 8 m, com 2,40 m de largura; o barco desenhado era dos pequenos (des. 45 e 46).

Costa de Lavos, Bateira do Mar.
Actividades Agro-Marítimas em Portugal



(legenda da imagem acima)
1) Cachulo [céu da proa] ; 2) Alvaçuz [arco da proa] ; 3) Mãosinha [golfiões] ; 4) Cinta ; 5) Borda falsa ; 6) Talabardões ; 7) Verdugo; 8) Escalamão [tolete] ; 9) Draga; 10) Banco da proa; 11) Banco da ré; 12) Paneiro da proa; 13) Paneiro da ré; a) Pormenor do bico; b) corte da borda, fora dos talabardões ; c) corte da borda na altura dos talabardões.

Na proa há um espaço coberto, o cachulo, cuja boca tem, em cima, uma peça arqueada, o alvaçuz, firmada nas bordas contra um par de braços, e cujo fundo é um estrado fixo, já debaixo do cachulo ; funcionando como caverna e braços, há 2 peças largas, recortadas de modo a deixarem em cima uma abertura semicircular, e cujas pontas superiores, passando acima da cobertura, formam as mãosinhas para amarração do cabo do ferro. À ré há um pequeno banco rectangular.

Costa de Lavos, Bateira do Mar.
Actividades Agro-Marítimas em Portugal



(legenda da imagem acima)
a) Vista interior da proa; b) pormenores do remate da ré.

O barco é movido a dois remos.


Os braços do cavername têm, a quase todo o comprimento do barco, a mesma curvatura e inclinação ; apenas junto da proa e da ré estas variam. No sector em que estão os talabardões, nos quais assentam as barras que servem de chumaceiras dos remos, os braços do cavername são, em cima, cortados horizontalmente; nos restantes braços, essa parte é cortada parcialmente em bisel, o que dá origem à inclinação do interior da borda.

Tanto a roda da proa como a da ré têm secção losangular e são cuidadosamente executadas. A da proa é, no bico, talhada de modo a simular o prolongamento da cinta. A da ré é ainda mais elaborada, e a ela se adapta um remate que do mesmo modo prolonga a cinta e a borda falsa (des. 46 b).

Figueira da Foz, Lavos, Barco da sardinha (Costa de Lavos), ed. Adelino Alves Pereira.
Delcampe

Como o barco pode varar de proa ou de ré, há no exterior do costado 2 ganchos a cada lado. Cravada na roda da ré há uma peça de ferro para a alagem do barco.


Figueira da Foz (Portugal), Barco de pesca na Costa de Lavos.
Delcampe oliveira73

A bombordo, logo adiante do banco da ré, e adaptada a 3 braços do cavername, há uma tábua larga fazendo um banco a meia altura do costado. Banco semelhante mas mais pequeno está a estibordo, logo à frente da antepara da ré. (2)


(1) William Graham, Travels in Portugal, Spain, during the Peninsular war, London, Sir RichardPhillips and Co. 1820 cf. Nótulas sobre a Figueira da Foz no século xix
(2) Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e Benjamim Pereira, Actividades Agro-Marítimas em Portugal

Leitura recomendada:
Manuel Costa Cintrão, Terras do Sul do Mondego até à Praia do Pedrógão: ecos da história (2 volumes), Figueira da Foz, 2021
Capitão João Pereira Mano, Terras do Mar Salgado, São Julião da Figueira da Foz — São Pedro da Cova-Gala — Buarcos — Costa de Lavos e Leirosa, 1997
Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, Palheiros do litoral central português, Instituto de Alta Cultura. Centro de Estudos de Etnologia Peninsular. Lisboa 1964
Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e Benjamim Pereira, Actividades Agro-Marítimas em Portugal

Mais informação:
Freguesia de Lavos (súmula histórica)
São Pedro Cova Gala (resenha histórica))
A. Pinheiro Marques, A arte-xávega da Beira Litoral e as sua embarcações
Gaspar Albino, Arte de Xávega

Leitura adicional:
Henrique Souto, Comunidades de pesca artesanal na costa portuguesa... 1998
Maria João Marques, Arte Xávega em Portugal

Sem comentários: