Praia do Pedrogão (Coimbrão, Leiria). Delcampe |
Mas já não havia medo. Treparam os dois fidalgos para a proa do barco; ocuparam os casteleiros os seus postos; plantou-se o arrais à popa, mão no roçoeiro, debaixo do pé a corda da muleta; ergueu-se no seu lugar o vareiro, mudo e roto como espantalho.
Praia do Pedrogão (Coimbrão, Leiria). Delcampe |
Rolaram a nave e, ao primeiro e sério chapinhar da água, o resto da tripulação saltou os bordos. O regedor da terra, o mestre, remadores dos outros barcos, dez, quinze mulheres empurravam com a muleta. Os homens devolutos puseram ombros contra os costados, Veio uma vaga, alagou a todos; veio segunda, despegou o esquife da orla, duas remadas, e empinou-se, desapareceu por detrás dum mar.
Praia do Pedrogão, aparelhando o barco com a rede. Delcampe |
Instantaneamente rompeu na praia um alarido pavoroso. Outro man o arrais fez sinal e, quando o aríete verde ia a lançar a marrada, o barco pulou. Rema, rema a vante! - e àquela voz os remos vergastaram rijamente a onda furiosa.
Praia do Pedrogão, ed. J. J. da Silva, puxando o barco para o mar. Delcampe |
Crescia sobre eles segundo vagalhão:
Praia do Pedrogão, ed. J. J. da Silva, barco com a rede entrando para o mar. Delcampe |
— Força! Força! Louvado seja, lá iam safos, entre duas campas, a salvar o contrabanco. Ainda bailava o Lírio de Jericó, mas o perigo era vencido. Na praia amainara a gritaria das mulheres. Com ar de desprezo, como se cuspisse no monte, o Savelheiro lançou-lhes:
— Cabras! Punho sempre teso na corda que o calador ia desenroscando, o arrais buscava orientar-se à boa terra de mar. Rezavam pelas almas do Purgatório, a quem são de grande lenitivo as preces anuviadas, e um cantador ergueu a voz:
Não se vê o fundo ao mar,
Assim, mulher, ao teu peito,
Se me quiser afogar,
Em qual dos dois eu me deito?!
Praia do Pedrogão, ed. J. J. da Silva, vista parcial Delcampe |
Àquela toadilha, os remos bateram a água em cadência e o meia-lua correu como galgo preto em charneca. A prumo, balouçando levemente ao embalo da onda, as bicas da proa e da ré pareciam mãos em transe, a suplicar.
Começaram a decrescer as casas do Pedrógão; tornaram-se diminutas como pedras dum jogo desmanchado; escureceu o verde nas hortas; pela praia os vultos transverteram-se para sombras fátuas. Uma cercadura de espuma envolvia o barco e, esflocando-se à popa, deixava um rabo-leva de anil e íris que não tinha fim.
O mar enrugava-se faiscando e, no balouço das suas pregas e repregas, dormiam garças e garajaus. Ao escritor afigurou-se que ia agarrado à juba dum leão.
Por deferência para com os fidalgos, o arrais andou à busca de “ensejo” até onde o alcance lhe permitiu. Ao primeiro fervedoiro de água apreciável, indício de cardume em derrota, bradou:
— Orça aí! Sustaram os remos. Em tom rude, de ladário, o Savelheiro encomendou o lanço às pessoas da Santíssima Trindade. E, remando à ré, calaram a rede. Ao afundir-se o saco, com entono de desafogo, ergueu nova imprecação:
— Largai saco ao mar; rezai o credo com boa fé; vá ele em louvor do Santíssimo Sacramento, para que o mal saia para fora e o bem entre para dentro.
Salvo da rede, sem os milhares de quilos que o pejavam, o barco respondeu ao espadanar dos remos pulando alegremente na superfície das águas. Içaram a bordo o pavilhão de festa. Pouco a pouco foi avultando a chanfradura da costa e, mais dentro, a laguna doirada dos areais, a mancha opaca da floresta, Pedrógão - tabuleiro de cubos negros.
Um fuminho ia-se carmeando e era a fimbria da mata. Mercê da névoa que flutuava sobre a terra, parecia tudo de pernas para o ar. Condensaram-se mais as coisas; ressaíram silhuetas; lobrigou-se o Pedrosa, plantado no chão branco, a ver o seu bem guardado pelo Anjo Custódio; à varanda do Posto, o fiscal devia assestar o óculo de ver ao longe.
Na franja clara da praia lá estavam os senhores lisboetas, estatelados na areia, a sonhar com as meninas do Chiado.
A passagem do contrabanco fez-se sem agruras nem aparato. O arrais aguardou a chapada da onda e deixou-se levar; a alçaprema formidável foi depô-lo em terra, manso, manso como as hacaneias que dobravam o joelho para as donas apearem.
Romperam logo os boizinhos de touço curto no manejo do arrasto, acicatados mais que de medida em homenagem aos forasteiros. Joaquim Lousal triunfava. À alegria que lhe era própria, com o seu tanto de pancada, aliava-se agora a satisfação de ver as coisas passarem-se a preceito do seu optimismo. Enquanto não arribava a rede, o vinho correu a rodos.
Praia do Pedrogão (Coimbrão, Leiria). Delcampe |
Emborrachou-se quem quis e o Pamplino, com vela e piela homéricas, subiu à varanda do Posto a personificar nos sete pecados mortais os sete figurões de Lisboa. (1)
(1) Aquilino Ribeiro, A batalha sem fim, 1932
Mais informação:
Aquilino Ribeiro revela-se um intérprete do mar, Ilustração n.° 17, setembro de 1932
A praia azul, Mundo Gráfico n° 47, 1944
Praia do Pedrógão (Coimbrão, Leiria), 1942. Hemeroteca Digital de Lisboa |
Leitura adicional:
Henrique Souto, Comunidades de pesca artesanal na costa portuguesa... 1998
Maria João Marques, Arte Xávega em Portugal
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