sexta-feira, 3 de junho de 2022

Praia do Pedrógão

A rilhar a última côdea, a hoste bárbara, esfarrapada, no meio da qual os alfacinhas rescendiam tanto em suas águas de cheiro que as varinas sentiam tonturas, avançou para a borda. Eram mais espaçadas, porém sempre alterosas, as ondas.

Praia do Pedrogão (Coimbrão, Leiria).
Delcampe

Mas já não havia medo. Treparam os dois fidalgos para a proa do barco; ocuparam os casteleiros os seus postos; plantou-se o arrais à popa, mão no roçoeiro, debaixo do pé a corda da muleta; ergueu-se no seu lugar o vareiro, mudo e roto como espantalho.


Praia do Pedrogão (Coimbrão, Leiria).
Delcampe

Rolaram a nave e, ao primeiro e sério chapinhar da água, o resto da tripulação saltou os bordos. O regedor da terra, o mestre, remadores dos outros barcos, dez, quinze mulheres empurravam com a muleta. Os homens devolutos puseram ombros contra os costados, Veio uma vaga, alagou a todos; veio segunda, despegou o esquife da orla, duas remadas, e empinou-se, desapareceu por detrás dum mar.

Praia do Pedrogão, aparelhando o barco com a rede.
Delcampe

Instantaneamente rompeu na praia um alarido pavoroso. Outro man o arrais fez sinal e, quando o aríete verde ia a lançar a marrada, o barco pulou. Rema, rema a vante! - e àquela voz os remos vergastaram rijamente a onda furiosa.

Praia do Pedrogão, ed. J. J. da Silva, puxando o barco para o mar.
Delcampe

Crescia sobre eles segundo vagalhão:

Praia do Pedrogão, ed. J. J. da Silva, barco com a rede entrando para o mar.
Delcampe

Força! Força! Louvado seja, lá iam safos, entre duas campas, a salvar o contrabanco. Ainda bailava o Lírio de Jericó, mas o perigo era vencido. Na praia amainara a gritaria das mulheres. Com ar de desprezo, como se cuspisse no monte, o Savelheiro lançou-lhes:

— Cabras! Punho sempre teso na corda que o calador ia desenroscando, o arrais buscava orientar-se à boa terra de mar. Rezavam pelas almas do Purgatório, a quem são de grande lenitivo as preces anuviadas, e um cantador ergueu a voz:

Não se vê o fundo ao mar,
Assim, mulher, ao teu peito,
Se me quiser afogar,
Em qual dos dois eu me deito?!


Praia do Pedrogão, ed. J. J. da Silva, vista parcial
Delcampe

Àquela toadilha, os remos bateram a água em cadência e o meia-lua correu como galgo preto em charneca. A prumo, balouçando levemente ao embalo da onda, as bicas da proa e da ré pareciam mãos em transe, a suplicar.

Começaram a decrescer as casas do Pedrógão; tornaram-se diminutas como pedras dum jogo desmanchado; escureceu o verde nas hortas; pela praia os vultos transverteram-se para sombras fátuas. Uma cercadura de espuma envolvia o barco e, esflocando-se à popa, deixava um rabo-leva de anil e íris que não tinha fim.

O mar enrugava-se faiscando e, no balouço das suas pregas e repregas, dormiam garças e garajaus. Ao escritor afigurou-se que ia agarrado à juba dum leão.

Por deferência para com os fidalgos, o arrais andou à busca de “ensejo” até onde o alcance lhe permitiu. Ao primeiro fervedoiro de água apreciável, indício de cardume em derrota, bradou:

Orça aí! Sustaram os remos. Em tom rude, de ladário, o Savelheiro encomendou o lanço às pessoas da Santíssima Trindade. E, remando à ré, calaram a rede. Ao afundir-se o saco, com entono de desafogo, ergueu nova imprecação:

Largai saco ao mar; rezai o credo com boa fé; vá ele em louvor do Santíssimo Sacramento, para que o mal saia para fora e o bem entre para dentro.

Salvo da rede, sem os milhares de quilos que o pejavam, o barco respondeu ao espadanar dos remos pulando alegremente na superfície das águas. Içaram a bordo o pavilhão de festa. Pouco a pouco foi avultando a chanfradura da costa e, mais dentro, a laguna doirada dos areais, a mancha opaca da floresta, Pedrógão - tabuleiro de cubos negros.

Um fuminho ia-se carmeando e era a fimbria da mata. Mercê da névoa que flutuava sobre a terra, parecia tudo de pernas para o ar. Condensaram-se mais as coisas; ressaíram silhuetas; lobrigou-se o Pedrosa, plantado no chão branco, a ver o seu bem guardado pelo Anjo Custódio; à varanda do Posto, o fiscal devia assestar o óculo de ver ao longe.

Na franja clara da praia lá estavam os senhores lisboetas, estatelados na areia, a sonhar com as meninas do Chiado.

A passagem do contrabanco fez-se sem agruras nem aparato. O arrais aguardou a chapada da onda e deixou-se levar; a alçaprema formidável foi depô-lo em terra, manso, manso como as hacaneias que dobravam o joelho para as donas apearem.

Romperam logo os boizinhos de touço curto no manejo do arrasto, acicatados mais que de medida em homenagem aos forasteiros. Joaquim Lousal triunfava. À alegria que lhe era própria, com o seu tanto de pancada, aliava-se agora a satisfação de ver as coisas passarem-se a preceito do seu optimismo. Enquanto não arribava a rede, o vinho correu a rodos.

Praia do Pedrogão (Coimbrão, Leiria).
Delcampe

Emborrachou-se quem quis e o Pamplino, com vela e piela homéricas, subiu à varanda do Posto a personificar nos sete pecados mortais os sete figurões de Lisboa. (1)


(1) Aquilino Ribeiro, A batalha sem fim, 1932

Mais informação:
Aquilino Ribeiro revela-se um intérprete do mar, Ilustração n.° 17, setembro de 1932
A praia azul, Mundo Gráfico n° 47, 1944

Praia do Pedrógão (Coimbrão, Leiria), 1942.
Hemeroteca Digital de Lisboa

Leitura adicional:
Henrique Souto, Comunidades de pesca artesanal na costa portuguesa... 1998
Maria João Marques, Arte Xávega em Portugal

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