Ovar, Furadouro. Barco de pesca entrando no mar, ed. Paulo Guedes & Saraiva n° 16, 1904. Ovar memórias (fb) |
Os pescadores organizavam-se para a exploração do mar em companhas de tipo cooperativista rudimentar, sociedades onde cada um punha em comum com o seu capital, o esforço próprio e a ajuda da família que trabalhava em terra. Cada quota tinha o nome de quinhão e todos os lucros ou prejuízos eram suportados proporcionalmente pelos sócios, estando incluídos nos quinhões o socorro às viúvas, pais, inválidos, doentes, velhos e falecidos.
Ovar, Furadouro. Conducção da rede, ed. Paulo Guedes & Saraiva n° 17, 1904. Ovar memórias (fb) |
As escrituras de sociedade e de arraisaria entre o arrais, o procurador, o escrivão – governança da companha – e os sócios eram muito frequentes entre 1840 e 1870. Baldaque da Silva transcreve um regulamento para as companhas da Torreira de 5 de Novembro de 1852, onde se determina:
“Haverá uma comissão directora das companhas de pesca da costa da Torreira, composta por três vogaes, e presidida pelo administrador do concelho, nomeada pelo governador civil e com funções gratuitas. As companhas são sociedades 58 regidas e administradas por um arraes de terra e outro do mar, um procurador e um escrivão e compõem-se além d’estes de 170 a 200 sócios, tendo um inventario de todos os bens da sociedade”.
Ovar, Furadouro. Partida para a pesca, ed. Casa Santos, c. 1931. Ovar memórias (fb) |
Em 1776 veio para o Furadouro o francês João Pedro Mijoulle que, juntamente com alguns catalães, instalou na praia o primeiro processo de conservação de sardinha pela salga, método mantido em segredo durante algum tempo.
Ovar, Furadouro. Meia lua de pesca, ed. Casa Santos, c. 1931. Ovar memórias (fb) |
Foi ainda nessa altura que surgiram as companhas de estrutura económica capitalista incipiente, sob a forma de empresas de “senhorio” ou de “terço”, pois o capitalista associado cobrava um terço da produção. Os financiadores das companhas eram catalães instalados em Ovar, oligarquia local que possuía também marinhas de sal. Muitas das velhas companhas, obrigadas a recorrer a usurários que lhes emprestavam o capital necessário para as despesas de exploração sempre crescentes, sucumbiram.
Estas novas sociedades eram constituídas por pessoas estranhas à classe piscatória e o pescador passou a ser um simples assalariado, recebendo soldada ou vencimento diário, caldeirada e, desde data mais recente, uma percentagem sobre o apuro bruto do arrasto.
Em meados do século XX, as matrículas dos pescadores, na sequência de contratos verbais, compreendiam a importância das soldadas ou o quantitativo das percentagens a atribuir ao pessoal, conforme registo feito na Capitania durante o primeiro trimestre de cada ano.
No século XIX, deu-se na técnica da xávega uma transformação significativa: a tracção a braços foi substituída pela tracção com juntas de bois, distribuídas pelas duas cordas das mangas da rede, pelo que ao pescador se aliou o boieiro.
Bois arrastando o barco, Emílio Biel & Cª n° 204, c. 1904. Ovar memórias (fb) |
Segundo Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, em 1886, em S. Jacinto encontram-se apenas duas companhas com quatro barcos de xávega e cento e cinquenta homens. Mas em 1887 inicia-se a prática da alagem das redes com gado, que obriga à construção de abegoarias.
Em 1890 já ali se contam seis companhas de xávega (além de 26 de mexoalho), que subsistem ainda em 1911, empregando um total de 570 homens e 70 rapazes, dos quais 216 trabalhavam no mar e os restantes em terra.
As empresas possuíam 176 bois, que adquiriam no começo da safra e vendiam no final... (1)
Actualmente (1906) trabalham na costa do Furadouro quatro companhas — a de S. Pedro ou do Guincho, a de S. Luís ou a Camona, a da Senhora do Socorro ou do Massaroca, e a «Boa Esperança», empresa que gira sob a firma de Pinto Palavra & C.ª L.ª
Barco de pesca "Esperança" dirigindo-se ao lançamento das redes. Serões, Revista mensal ilustrada n° 14, agosto de 1906 |
Das três primeiras companhas são respectivamente senhorios os Srs. João Pacheco Polónia, Francisco Ferreira Coelho e Joaquim Valente de Almeida, e da empresa de pesca "Boa Esperança" é gerente o Sr. Francisco de Matos, bem quisto comerciante da Praça de Ovar.
Daquelas sociedades de pesca, que no fim de cada safra podem apresentar, em média, uma receita não inferior a cinquenta contos de reis, a mais recentemente fundada foi a «Boa Esperança», pois que a sua organização data de 16 de Fevereiro do corrente ano.
A montagem desta companha e o seu processo de trabalho são notáveis e dignos de minucioso exame por parte de todas as pessoas que se interessam pela arte da pesca.
Ao sul da praia e em terreno cedido pela fábrica de conservas A Varina (v. Ovar News), que tem a sua sede na vila de Ovar, e cuja filial, para o fabrico da sardinha, ali se encontra muito bem montada, está feita a instalação da nova companha, que se compõe de grandes armazéns de madeira, divididos em três corpos solidamente construídos: um ao fundo para habitação do pessoal e dois aos lados, sendo destes um para abegoaria e outro para guarda de aparelhos, além de outras dependências de somenos importância.
Para quem nunca viu a pesca de arrasto em algumas das costas do norte de Portugal, torna-se um passatempo cheio de curiosidade o presenciar toda essa cena de um pitoresco e de um sabor local inexcedíveis. Desde o lançar dos barcos ao mar até ao sair das redes, sucedem-se interessantíssimas manobras que, apesar de rotineiras, são duma grande utilidade e precisão.
A praia, em dias de pesca abundante, é extraordinariamente movimentada e sobretudo no momento em que as redes chegam a terra. O espectáculo então é maravilhoso e sempre belo. O sussurro monótono das vagas, o piar agudo e incessante das gaivotas que em enormes bandos se aproximam da beira-mar e a vozearia ensurdecedora dos pescadores ao puxar as redes para fora da água produzem uma música estranha, que se ouve a muita distância e cuja toada não deixa de ter uma certa harmonia que deliciosamente encanta os que a escutam.
Logo que a sardinha sai das redes e é comprada por vários mercantéis, são as vareiras encarregadas da sua condução para os palheiros dos compradores, depois de a escorcharem com uma rapidez assombrosa.
Varina e pescador, Francisco José Resende, 1859. Cabral Moncada Leilões |
É então que a vareira se mostra tal qual é: — forte, desenvolta, ágil e corajosa, trabalhando sem descanso, correndo sobre a areia como ligeira arvéloa, metendo-se pela água do mar até à cintura para lavar os rapichéis da sardinha, cantando sempre, rindo sempre e aspirando a plenos pulmões o ar forte e sadio da beira-mar. (2)
O Furadouro é a praia de Ovar e em 1997 apenas nela trabalharam duas companhas de xávega, embora também aqui tenha pescado uma bateira de mar (embarcacão de menores dimensôes do que o chamado barco de mar), que utilizou mugiganga (rede do mesmo tipo da xávega mas alada para bordo).
Ovar. Partida d'um barco de pesca para o mar, ed. Santos Cunha, c. 1913. Ovar memórias (fb) |
Desta região saíram pescadores responsáveis pelo povoamento de muitas praias, tanto a Norte com o a Sul e os varinos e varinas (de Ovar) estão omnipresentes em toda a bibliografia sobre pesca em Portugal.
Caracteristicamente, deslocavam-se no Verão, aos casais, nas suas bateiras, onde também pernoitavam, pescando ao longo de toda a costa pelo menos até aos rios Tejo e Sado (no quais penetravam na temporada do sável); para Norte distribuiram-se pelo menos até ao rio Lega (Matosinhos) e fundaram, no rio Douro, a Afurada.
Vareira, Augusto Roquemont, 1847. Museu Nacional de Soares dos Reis |
Como tradicionalmente as mulheres eram também peixeiras (vendendo porta-a-porta), a designacão varina refere-se, ainda hoje, âs vendedoras de peixe que se deslocam a pé apregoando o seu peixe, independentemente da sua origem. (3)
(1) Clara Sarmento, Práticas, discursos e representações da cultura popular portuguesa, 2007
(2) Serões, Revista mensal ilustrada n° 14, agosto de 1906
(3) Henrique Souto, Comunidades de pesca artesanal na costa portuguesa... 1998
Mais informação:
Fotos do Livro de José de Oliveira Neves, A Pesca no Furadouro (1800-1955)
A Bateira do Mar «Carlitos» no Marintimidades de Ana Maria Lopes
Alfredo Pinheiro Marques, A arte-xávega da Beira Litoral e as suas embarcações, Revista da Armada n° 555, setembro-outubro de 2000
Jorge Branco, Pesca Tradicional na Laguna de Aveiro: Cais, Embarcações e Artes
Artigos relacionados:
Fragateiros de Ovar
Leitura adicional:
Raul Brandão, Os Pescadores, Paris, Ailland, 1923, 326 págs, 127,7 MB
Clara Sarmento, Práticas, discursos e representações da cultura popular portuguesa, 2007
Henrique Souto, Comunidades de pesca artesanal na costa portuguesa... 1998
Adolpho Loureiro, Os portos maritimos de Portugal e ilhas adjacentes, 1904
Maria João Marques, Arte Xávega em Portugal
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