quarta-feira, 29 de junho de 2022

Praia do Furadouro (aforadouro na gelfa, Ovar)

Data de 1600 a notícia mais antiga sobre as companhas de pesca de arrasto no Furadouro. Segundo as Memórias e Datas para a História da Vila de Ovar, naquele ano existiam quatro companhas de chinchorro ou artes-pequenas (cf. João Frederico Teixeira de Pinho, Memórias e Datas para a História da Vila de Ovar).

Ovar, Furadouro. Barco de pesca entrando no mar, ed. Paulo Guedes & Saraiva n° 16, 1904.
Ovar memórias (fb)

Os pescadores organizavam-se para a exploração do mar em companhas de tipo cooperativista rudimentar, sociedades onde cada um punha em comum com o seu capital, o esforço próprio e a ajuda da família que trabalhava em terra. Cada quota tinha o nome de quinhão e todos os lucros ou prejuízos eram suportados proporcionalmente pelos sócios, estando incluídos nos quinhões o socorro às viúvas, pais, inválidos, doentes, velhos e falecidos.

Ovar, Furadouro. Conducção da rede, ed. Paulo Guedes & Saraiva n° 17, 1904.
Ovar memórias (fb)

As escrituras de sociedade e de arraisaria entre o arrais, o procurador, o escrivão – governança da companha – e os sócios eram muito frequentes entre 1840 e 1870. Baldaque da Silva transcreve um regulamento para as companhas da Torreira de 5 de Novembro de 1852, onde se determina:

“Haverá uma comissão directora das companhas de pesca da costa da Torreira, composta por três vogaes, e presidida pelo administrador do concelho, nomeada pelo governador civil e com funções gratuitas. As companhas são sociedades 58 regidas e administradas por um arraes de terra e outro do mar, um procurador e um escrivão e compõem-se além d’estes de 170 a 200 sócios, tendo um inventario de todos os bens da sociedade”.

Ovar, Furadouro. Partida para a pesca, ed. Casa Santos, c. 1931.
Ovar memórias (fb)

Em 1776 veio para o Furadouro o francês João Pedro Mijoulle que, juntamente com alguns catalães, instalou na praia o primeiro processo de conservação de sardinha pela salga, método mantido em segredo durante algum tempo.

Ovar, Furadouro. Meia lua de pesca, ed. Casa Santos, c. 1931.
Ovar memórias (fb)

Foi ainda nessa altura que surgiram as companhas de estrutura económica capitalista incipiente, sob a forma de empresas de “senhorio” ou de “terço”, pois o capitalista associado cobrava um terço da produção. Os financiadores das companhas eram catalães instalados em Ovar, oligarquia local que possuía também marinhas de sal. Muitas das velhas companhas, obrigadas a recorrer a usurários que lhes emprestavam o capital necessário para as despesas de exploração sempre crescentes, sucumbiram.

Estas novas sociedades eram constituídas por pessoas estranhas à classe piscatória e o pescador passou a ser um simples assalariado, recebendo soldada ou vencimento diário, caldeirada e, desde data mais recente, uma percentagem sobre o apuro bruto do arrasto.

Em meados do século XX, as matrículas dos pescadores, na sequência de contratos verbais, compreendiam a importância das soldadas ou o quantitativo das percentagens a atribuir ao pessoal, conforme registo feito na Capitania durante o primeiro trimestre de cada ano.

No século XIX, deu-se na técnica da xávega uma transformação significativa: a tracção a braços foi substituída pela tracção com juntas de bois, distribuídas pelas duas cordas das mangas da rede, pelo que ao pescador se aliou o boieiro.

Bois arrastando o barco, Emílio Biel & Cª n° 204, c. 1904.
Ovar memórias (fb)

Segundo Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, em 1886, em S. Jacinto encontram-se apenas duas companhas com quatro barcos de xávega e cento e cinquenta homens. Mas em 1887 inicia-se a prática da alagem das redes com gado, que obriga à construção de abegoarias.


Em 1890 já ali se contam seis companhas de xávega (além de 26 de mexoalho), que subsistem ainda em 1911, empregando um total de 570 homens e 70 rapazes, dos quais 216 trabalhavam no mar e os restantes em terra.

As empresas possuíam 176 bois, que adquiriam no começo da safra e vendiam no final... (1)

Actualmente (1906) trabalham na costa do Furadouro quatro companhas — a de S. Pedro ou do Guincho, a de S. Luís ou a Camona, a da Senhora do Socorro ou do Massaroca, e a «Boa Esperança», empresa que gira sob a firma de Pinto Palavra & C.ª L.ª

Barco de pesca "Esperança" dirigindo-se ao lançamento das redes.
Serões, Revista mensal ilustrada n° 14, agosto de 1906

Das três primeiras companhas são respectivamente senhorios os Srs. João Pacheco Polónia, Francisco Ferreira Coelho e Joaquim Valente de Almeida, e da empresa de pesca "Boa Esperança" é gerente o Sr. Francisco de Matos, bem quisto comerciante da Praça de Ovar.


Daquelas sociedades de pesca, que no fim de cada safra podem apresentar, em média, uma receita não inferior a cinquenta contos de reis, a mais recentemente fundada foi a «Boa Esperança», pois que a sua organização data de 16 de Fevereiro do corrente ano.

A montagem desta companha e o seu processo de trabalho são notáveis e dignos de minucioso exame por parte de todas as pessoas que se interessam pela arte da pesca.

Ao sul da praia e em terreno cedido pela fábrica de conservas A Varina (v. Ovar News), que tem a sua sede na vila de Ovar, e cuja filial, para o fabrico da sardinha, ali se encontra muito bem montada, está feita a instalação da nova companha, que se compõe de grandes armazéns de madeira, divididos em três corpos solidamente construídos: um ao fundo para habitação do pessoal e dois aos lados, sendo destes um para abegoaria e outro para guarda de aparelhos, além de outras dependências de somenos importância.

Para quem nunca viu a pesca de arrasto em algumas das costas do norte de Portugal, torna-se um passatempo cheio de curiosidade o presenciar toda essa cena de um pitoresco e de um sabor local inexcedíveis. Desde o lançar dos barcos ao mar até ao sair das redes, sucedem-se interessantíssimas manobras que, apesar de rotineiras, são duma grande utilidade e precisão.

A praia, em dias de pesca abundante, é extraordinariamente movimentada e sobretudo no momento em que as redes chegam a terra. O espectáculo então é maravilhoso e sempre belo. O sussurro monótono das vagas, o piar agudo e incessante das gaivotas que em enormes bandos se aproximam da beira-mar e a vozearia ensurdecedora dos pescadores ao puxar as redes para fora da água produzem uma música estranha, que se ouve a muita distância e cuja toada não deixa de ter uma certa harmonia que deliciosamente encanta os que a escutam.

Logo que a sardinha sai das redes e é comprada por vários mercantéis, são as vareiras encarregadas da sua condução para os palheiros dos compradores, depois de a escorcharem com uma rapidez assombrosa.

Varina e pescador, Francisco José Resende, 1859.
Cabral Moncada Leilões

É então que a vareira se mostra tal qual é: — forte, desenvolta, ágil e corajosa, trabalhando sem descanso, correndo sobre a areia como ligeira arvéloa, metendo-se pela água do mar até à cintura para lavar os rapichéis da sardinha, cantando sempre, rindo sempre e aspirando a plenos pulmões o ar forte e sadio da beira-mar. (2)

O Furadouro é a praia de Ovar e em 1997 apenas nela trabalharam duas companhas de xávega, embora também aqui tenha pescado uma bateira de mar (embarcacão de menores dimensôes do que o chamado barco de mar), que utilizou mugiganga (rede do mesmo tipo da xávega mas alada para bordo).

Ovar. Partida d'um barco de pesca para o mar, ed. Santos Cunha, c. 1913.
Ovar memórias (fb)

Desta região saíram pescadores responsáveis pelo povoamento de muitas praias, tanto a Norte com o a Sul e os varinos e varinas (de Ovar) estão omnipresentes em toda a bibliografia sobre pesca em Portugal.

Caracteristicamente, deslocavam-se no Verão, aos casais, nas suas bateiras, onde também pernoitavam, pescando ao longo de toda a costa pelo menos até aos rios Tejo e Sado (no quais penetravam na temporada do sável); para Norte distribuiram-se pelo menos até ao rio Lega (Matosinhos) e fundaram, no rio Douro, a Afurada.

Vareira, Augusto Roquemont, 1847.
Museu Nacional de Soares dos Reis

Como tradicionalmente as mulheres eram também peixeiras (vendendo porta-a-porta), a designacão varina refere-se, ainda hoje, âs vendedoras de peixe que se deslocam a pé apregoando o seu peixe, independentemente da sua origem. (3)


(1) Clara Sarmento, Práticas, discursos e representações da cultura popular portuguesa, 2007
(2) Serões, Revista mensal ilustrada n° 14, agosto de 1906
(3) Henrique Souto, Comunidades de pesca artesanal na costa portuguesa... 1998

Mais informação:
Fotos do Livro de José de Oliveira Neves, A Pesca no Furadouro (1800-1955)
A Bateira do Mar «Carlitos» no Marintimidades de Ana Maria Lopes
Alfredo Pinheiro Marques, A arte-xávega da Beira Litoral e as suas embarcações, Revista da Armada n° 555, setembro-outubro de 2000
Jorge Branco, Pesca Tradicional na Laguna de Aveiro: Cais, Embarcações e Artes

Artigos relacionados:
Fragateiros de Ovar

Leitura adicional:
Raul Brandão, Os Pescadores, Paris, Ailland, 1923, 326 págs, 127,7 MB
Clara Sarmento, Práticas, discursos e representações da cultura popular portuguesa, 2007
Henrique Souto, Comunidades de pesca artesanal na costa portuguesa... 1998
Adolpho Loureiro, Os portos maritimos de Portugal e ilhas adjacentes, 1904
Maria João Marques, Arte Xávega em Portugal

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