sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Há-de ser o que Deus quiser

Cada “meia-lua” era manobrado por uma “companha” ou associação de pescadores que vieram sobretudo de Lavos e Buarcos para tomar parte numa forma particular de arrasto com rede de cerco. Alguns dos homens que trabalhavam nesta ocupação eram também do Algarve.

Meia-lua "Há-de ser o que Deus quiser" actualmente no Museu de Marinha.
Costa da Caparica, Regresso de pescadores, ed. Passaporte 61 370.
Delcampe

Estas grandes embarcações eram construídas com quatro bancadas para os remadores e as posteriores, mais pequenas, e em menor número, que mediam 8,50 x 2,40 metros aproximadamente, eram construídas com três. 

Almada, Mapa Turístico ROTEP (detalhe da cobertura); Organização de Camacho Pereira, 1959.
Delcampe

A parte de ré do casco era deixada aberta para permitir espaço no qual era alojada a rede, as suas numerosas poitas e flutuadores de cortiça e os cabos de puxar.

Embarcação tradicional meia-lua TR 306L (detalhe), Almada, miradouro de Lisboa,  ROTEP.
Arquivo Histórico da Marinha

Nos tempos antigos, alguns “meias-luas” eram aparelhados com vela e leme do tipo “xarolo” para a pesca no Rio Tejo, para vender o peixe nos mercados da margem norte. Em 1948 existiam 14 “Meias Luas” na Caparica, mas o seu número foi descendo, podendo em 1970 serem contados pelos dedos de uma mão.

Prevendo o seu rápido desaparecimento, o Museu de Marinha adquiriu em Junho de 1975 um exemplar que se encontra exposto junto à entrada para o Planetário e onde o visitante pode admirar as suas belas formas e toda uma arte que se vai extinguindo. (1)

Meia lua da Costa da Caparica, "Ha-de ser o que Deus Quiser", 1946.
Revista da Armada

Meia lua "Ha-de ser o que Deus Quiser", TR-306-L. Registada na Delegação Marítima da Trafaria, em 18 de setembro de 1946 por Vitorino José, que a mandou construir ao carpinteiro naval, Marcolino Ferreira, no estaleiro de Porto Brandão. Destinava-se à pesca local com arte de navegar.

Em 04 de março de 1950 passou a ser propriedade de António Xavier Carradinha e António Pinto Ribeiro.

Marintimidades

Lotação: 12 homens; Tonelagem: 4,155. Comprimento: 8,50 m (8,42 m Documento da Delegação Marítima); Boca: 2,40 m (2,35 m Documento da Delegação Marítima); Pontal: 0,80 m (0,84 m Documento da Delegação Marítima). (2)

Há-de Ser o Que Deus Quiser José António Galinho [pai de Vitorino José Galinho] 1946 TR-306-L
Comp: 08,42; Boca: 2,35; Pontal: 0,84; T: 4155.


Há-de Ser o Que Deus Quiser [a partir de 1950] António Pinto Ribeiro, o "Cavalinha", António Xavier Carrapinha 1946 TR-306-L
Comp: 08,42; Boca: 2,40; Pontal: 0,80; T: 4155. (3)


(1) Manuel Leitão, Revista da Armada, Dezembro 2002, [pág. 397, ou pesquisar "Caparica"]
(2) Museu de Marinha
(3) Mário Silva Neves, Tu, Costa Minha!... o passado e o presente, 2002

domingo, 26 de janeiro de 2020

Os nomes dos barcos (3 de 3)

Ainda antes de 1940 os pescadores da Costa da Caparica começaram a diversificar a sua fonte de rendimento, dedicando-se a serviços relacionados com o aumento do turismo. A pesca deixou então de ser o único, e principal, recurso económico de muitas familias. Apareciam então as pequenas embarcações de tosado modesto, as chatas com painel à popa, e outras embarcações com características de ambos, lanchas, para muitos.

Costa da Caparica, chata Quatro Marias, TR 332 L, em 1947.
Delcampe Bosspostcard


O tempo dos grandes barcos desvanecia-se.

Costa da Caparica, Saindo para o mar, ed. Centro de Caridade N. Sra. do Perpétuo Socorro, 173.
Delcampe

Saveiros sem proa adunca ou de bicas curtas

Deus Não Dorme
Nemo
João Francisco
Moisés 2.°
São Pedro
Mascarenhas
Virgílio
Nemo
São José
Três Irmãos
Feio
Três Irmãos
São Pedro
João
Mar da Lage [de António Gonçalves Ribeiro, "Tarzan"]


"Tarzan da Costa" à proa da embarcação Mar da Lage (TR 3131), Costa da Caparica, 1964.
Notícias da Gandaia

Dragão
Rita Maria
João
Canope
Canope
Adélia
Deus Te Guie [v. artigo dedicado: Deus te guie]

Costa da Caparica, Deus te guie.

Tubarão

Chatas

Zeca
Flor da Baía
Flor do Cabo
Diana
Natividade
Catarina
Boa Fé 
Nova Rita 
Até Que Enfim
Fúria do Mar 
Robalo
Paulo e Paula 
Hermínia Silva
Duas Netas 
Canope
Neptuno 
Robalo
Carla Sofia
Graziela 
Pina 
Afrodite 
Coqueluche
Rainha dos Mares 
Menina Encantada
Filho da Mãe
Anizé 
Duas Irmãs 
Sónia 
Boneca 
Rainha da Costa 
Cláudia Filipa 
O Meu Neto 
Flor do Cabo 
Nova Rosa 
Rosita Rosa 
Amorosa 
Santa Maria 
Adelaide 
Clarisse
Ana 
Luiz 
Deusa do Mar 

Costa da Caparica, chata "Deusa do Mar" em primeiro plano, década de 1960.
Marintimidades

Rumo à Liberdade 
Ricardina Florbela
Batalha Cristina Maria 
Gringo
Maria da Solidade 
Maria João 
Adelina Maria 
Ana Cristina 
Ana Isabel 
Meira Dias 
Manuel Calhotas 
Isaura de Jesus (1)


(1) Mário Silva Neves, Tu, Costa Minha!... o passado e o presente, 2002


Algumas embarcações de madeira não referidas acima, outras haverão decerto:

O Pio, da Fonte da Telha

Fonte da Telha, "O Pio" na pancada do mar.
autor não referido

A chata Caparicana

Costa da Caparica, Puxando a barca para a pesca,
ed. Centro de Caridade N. Sra. do Perpétuo Socorro, 613.
Delcampe - Bosspostcard

E o Anjo da guarda, 1951 [v. artigo dedicado: Companha do Anjo da Guarda (na faina da arribação)].

Costa da Caparica, colecção Passaporte-Loty n° 66, Pescadores arrastando o seu barco, c. 1960.
Delcampre



sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Os nomes dos barcos (2 de 3)

Anteriormente qualificamos alguns dos barcos de mar típicos, não exclusivos, da Costa da Caparica: o saveiro (barco de mar) e os meias-lua (ou saveiros meia lua) nas variantes com e sem proa adunca (isto é, de bicas curtas).

Saveiro da costa norte, "Sempre vim", 1920.
Museu de Marinha

Ainda clarificando a não exclusividade, diriamos que o Sempre vim, na imagem acima, seria um perfeito saveiro meia-lua da Costa da Caparica, se não fosse uma embarcação da Costa Nova.

Já o S. Paio, saveiro meia-lua da Torreira, que esteve exposto no Exeter Maritime Museum, com assimetria pronunciada entre a proa e a popa, nunca se confundiria com o meia-lua da Costa da Caparica

Saveiro meia-lua da Torreira, "S. Paio", Exeter Maritime Museum (1969-1997).
eBay

Vejam-se ainda as referências seguintes, divergentes na maior parte do nosso ponto de vista, relativas à morfologia das embarcações e outros conceitos de saveiro:

Paul Johnstone, The Sea-Craft of Prehistory, 1988
Hernâni A. Xavier, A Ascendência dos barcos tradicionais portugueses, 2008
Octávio Lixa Filgueiras, Barcos de Portugal, obras selecionadas

Passamos agora a listar as embarcações maiores da xávega na Costa da Caparica (cf. Mário Silva Neves, Tu, Costa Minha!... o passado e o presente, 2002):

Meias-lua

Costa da Caparica, pescadores, 1901.
Biblioteca Nacional de España

Nome Proprietário/ArraisAno de construção — Matrícula
Dimensões (m)/Tonelagem (Kg)

[comentários]

Maria Bemvinda Salvador José "Catita" 1915
Comp: 10,00; Boca: 2,42; Pontal: 0,90; T: 5022.


Apolo Manuel Vicente e Lucinda M Rodrigues 1921 T-95-F
Comp: 08,80; Boca: 1,84; Pontal: 0,60; T: 3000.


São Pedro Sebastião dos Santos 1921
Comp: 05,30; Boca: 1,93; Pontal: 0,60; T: 1267. 


Maria Bemvinda José Efigénio de Sousa 1923
Dimensões não referidas


Alegre Pescador Sebastião dos Santos 1924
Comp: 06,10; Boca: 1,66; Pontal: 0,71; T: 2006. 


São José Proprietário/Arrais não referidos 1928 
Comp: 08,20 Boca: 2,22; Pontal: 0,85; T: 3087.

Canope José Efigénio de Sousa (1898-1969) 1928
Comp: 07,50; Boca: 2,26; Pontal: 0,80; T: 3047.


Santo António Proprietário/Arrais não referidos 1930
Comp: 10,00; Boca: 2,42; Pontal: 0,90; T: 5022.


Galinho do Mar José António Galinho 1939
Comp: 06,70; Boca: 2,15; Pontal: 0,80; T: 3131.

[renomeado "Deus Te Proteja"]

Bomfim Proprietário/Arrais não referidos 1944
Comp: 09,34; Boca: 2,42; Pontal: 0,90; T: 5000.


Há-de Ser o Que Deus Quiser José António Galinho 1946 TR-306-L
Comp: 08,42; Boca: 2,35; Pontal: 0,84; T: 4155. 

[exposto no Museu de Marinha]

Meia lua da Costa da Caparica, "Ha-de ser o que Deus Quiser", 1946.
Revista da Armada

Cavalinha Manuel Ribeiro "Cavalinha" 1946 TR-306-L
Comp: 08,42; Boca: 2,40; Pontal: 0,80; T: 4155.

[exposto no Museu de Marinha, embarcação "Há-de Ser o Que Deus Quiser"]

São Gonçalo Augusto Teixeira 1947 Dimensões não referidas
[companha do Caibem]

Deus Te Acompanhe José Severino Júnior "Zé Russo" 1948
Comp: 08,40; Boca: 2,42; Pontal: 0,85; T: 4319. 


Nemo Proprietário/Arrais não referidos não referido
Comp: 07,55; Boca: 2,35; Pontal: 0,85; T: 4064.


Mar da Lage Proprietário/Arrais não referidos Data não referida 
Dimensões não referidas

São Francisco Proprietário/Arrais não referidos Data não referida  
Dimensões não referidas
[alcunhado de "Bicudo"]

Pombinho Mário Gonçalves "Corvo" Data não referida [1940]
[Comp: 08,23; Boca: 2,35; Pontal: ; T: .
informação em Caxinas a freguesia: Barcos tradicionais portugueses...
]
[exposto em Londres; com efeito o meia-lua da Caparica, juntamente com outras embarcações tradicionais portuguesas, esteve exposto no Exeter Maritime Museum (1969-1997), Devon, curador: Major David Goddard]

Galinho António G Bexiga "Tó Bexiga" Data não referida
Dimensões não referidas


Saveiros

Costa da Caparica, saveiro.
Revista Ilustração n.° 14, julho de 1933

Nome Proprietário/ArraisAno de construção — Matrícula
Dimensões (m)/Tonelagem (Kg)

[comentários]

Bexiga Proprietário/Arrais não referidos 1917 
Comp: 10,30; Boca: 2,65; Pontal: 1,05; T: 6088.
[renomeado "Boer"]

Santa Tereza Manuel Joaquim da Costa Joaquim Victor Costa 1917 
não referido

Santa Tereza Francisco José da Silva "Mestre Chico" 1917 
Comp: 10,30; Boca: 2,65; Pontal: 1,05; T: 6088.
[renomeado "Nilo"]
 
Mais Valia Francisco José da Silva "Mestre Chico" 1921 
Comp: 10,30; Boca: 2,65; Pontal: 1,05; T: 6088.
[dimensões do "Boer"]

Turistas na Costa da Caparica, década de 1920.

Pimpão Francisco José da Silva "Mestre Chico" 1922 
Comp: 10,30; Boca: 2,65; Pontal: 1,05; T: 6088.
[dimensões do "Boer"]

Apolo Francisco José da Silva "Mestre Chico" 1922 
Comp: 10,30; Boca: 2,65; Pontal: 1,05; T: 6088.
[dimensões do "Boer"]

Anjo da Guarda Salvador José "Catita" 1923 
Comp: 10,30; Boca: 2,65; Pontal: 1,05; T: 6088.

Oceano Manuel S Mau e Cecília M Rodrigues 1923 
Comp: 09,80; Boca: 2,55; Pontal: 0,90; T: 5040.

Ernestino Ernestino Manuel Mateus 1923 
Comp: 10,20; Boca: 0,00; Pontal: 0,95; T: 5020.

Triste  Pensativo Francisco José da Silva "Mestre Chico" 1923 T-122-F 
Comp: 10,30; Boca: 2,65; Pontal: 1,05; T: 6088.
[dimensões do "Boer" [v. artigos dedicados: A tragédia do Pensativo por Norberto de Araújo; O naufrágio do Pensativo]

Triste Pensativo. O barco que naufragou, depois de recolhido e varado em terra.
Torre do Tombo

Garibalde Francisco José da Silva "Mestre Chico" 1923 
Comp: 10,30; Boca: 2,65; Pontal: 1,05; T: 6088. 
[dimensões do "Boer"]

República Francisco José da Silva "Mestre Chico" 1923 
Comp: 10,30; Boca: 2,65; Pontal: 1,05; T: 6088.
[dimensões do "Boer"]

Anjo da Guarda José Efigénio de Sousa 1923 Data não referida

Nautilus Proprietário/Arrais não referidos 1925 
Comp: 07,55; Boca: 2,10; Pontal: 0,85; T: 3000. 

(sem nome) registado José Maria da Silva 1927 
Comp: 08,22; Boca: 2,22; Pontal: 0,85; T: 1078.  

Costa da Caparica, Pescadores, ed. Furtado & Reis.
Dealcampe

Lavrador José Rodrigues Pronto 1927 
Dimensões não referidas
[renomeado "Camponês" em 1937]

Deus Te Guie Proprietário/Arrais não referidos 1947 
Comp: 08,63; Boca: 2,38; Pontal: 0,82; T: 4021.

Viriato José Mateus data não referida
Comp: 10,30; Boca: 2,65; Pontal: 1,05; T: 6088.
[dimensões do "Boer"]

Boer Francisco José da Silva "Mestre Chico" Data não referida
Comp: 10,30; Boca: 2,65; Pontal: 1,05; T: 6088. 

Costa da Caparica década de 1930.
Kenneth George Grubb

Mais Valia António Pedro Borrelha e Gertrudes Maria Data não referida
Comp: 10,30; Boca: 2,65; Pontal: 1,05; T: 6088.
[dimensões do "Boer"] (1)


(1) Mário Silva Neves, Tu, Costa Minha!... o passado e o presente, 2002  

domingo, 19 de janeiro de 2020

Os nomes dos barcos (1 de 3)

Sob o mote: "Gratas recordações. O recorte da silhueta do meia-lua sobre as ondas do mar prateado numa tarde de julho distante,

Pormenor da Praia de Caparica, ed Fotex 149 .
Delcampe

ou, no cole, reflectindo no espelho da vaza..."

Delcampe

Saveiro

Num apontamento anterior, Barcos meia-lua (Aveiros, não Saveiros...), referimos a Mesa do Tragamalho, e a maneira como as embarcações ílhavas aí são referidas.

Embarcações registadas e avençadas na repartição do Tramagalho, Lisboa, 1860.
Hemeroteca Digital

Saveiro é, genéricamente, a corruptela de Aveiro e não refere como é comumente aceite um tipo de embarcação em madeira, de fundo chato, para a pesca do sável etc. mas sim a embarcação típica da região de Aveiro.

Barco no Tejo com mau tempo, Emeric Essex Vidal (1791-1861), 1833.
artnet

Do mesmo modo, por exemplo, ovarina, mulher natural de Ovar, vendedeira ou vendedora de peixe, por via da espressão popular Ò varina! derivou no termo varina, e a naturalidade dos ílhavos nos ilhos, os aveiros se mudaram em saveiros.

Recomenda-nos atenção e reflexão a Dr.ª Ana Maria Lopes [Barco do mar "versus" barca da arte xávega], cujo trabalho muito apreciamos e a quem, não raras vezes, recorremos. Tomando nota prosseguimos.

Se alguém designa o bote, a chata, a lancha etc. como saveiro, não nos interessa. Para nós, saveiro, ou aveiro, é uma embarcação de pesca artesanal de mar ou de ria (fluvial), típica da região de Aveiro,  construída em madeira, de fundo chato, com rodas de prôa e de popa acentuadas, propulsionada a remos na faina da pesca, ou a remos e a vela de pendão, e no caso com leme de xarolo provisório, noutras deslocações.

Saveiro, alijo e savara, gravura, João Pedroso, 1860.
Hemeroteca Digital

Saveiro, refere a origem da embarcação, independentemente de outros significados: registos nas capitanias e delegações, tradição, opiniões. Só assim o termo saveiro tem sentido definido, consistente, imutável.

Saveiro da Costa.
Caderno de Todos os Barcos do Tejo, tanto de Carga e transporte como d'Pesca, por Joao de Souza, 1785.

Portanto, para nós, o termo saveiro (s.m.) é sinónimo de aveiro (s.m., neste caso), e é nesse sentido que o iremos utilizar.

Meia-lua

A designação de meia-lua (adj.) refere a forma do barco independentemente da sua origem. Conhecemo-lo construido nos mais diversos materiais, naturais, segundo a civilização e a região onde é utilizado, normalmente na pesca oceânica com as mais diversas técnicas e artes.

Setubal, Castello de S Filippe, diferentes prôas de barcos de mar ílhavos na praia, c. 1868.
Hemeroteca Digital

Coincidentemente, na costa portuguesa o meia-lua é originário da região Aveiro, daí o uso da expressão saveiro meia-lua para designar um certo tipo de embarcações. 

Costa da Caparica (detalhe), Penha Lopes, 1918-1922.
Arquivo Municipal de Lisboa

Segundo alguns autores [p. ex. J. A. Neves Cabral, Meia-Lua da Costa de Caparica..., Junta Distrital de Setúbal, 1969], o que diferencia o meia-lua do saveiro que não tem essa forma é a curvatura do casco do primeiro, que se desenvolve ao longo do comprimento da embarcação e que se funde gradualmente na altura das rodas de proa e de popa, simetrica ou assimetricamente conforme a região do país e o mar a que se destina, dando-lhe um tosado imponente e gracioso, inatingível pelo saveiros de fundo e verdugos planos na quase totalidade do comprimento da embarcação.

Será o anterior válido para embarcações pequenas mas, segundo nós, não para todas as de mais de 10 metros, pois quando varado no areal, o sustentáculo da arqueação recorre à resistência dos materiais, e o peso permanente da proa e da popa e do casco não assente, nas embarcações mais frágeis, acabaria por arruiná-las.

A forma do meia-lua é o que hoje se refere como design funcional. O arqueado, reverte em estrutura, aumentando a resistência da embarcação distribuindo e minimizando a força dos impactos das ondas e do peso da própria embarcação nos momentos em que esta não é suportada pela água num mar agitado. O mesmo arqueado aumenta a navegabilidade na ondulação junto à praia mantendo a embarcação sempre acima da rebentação das ondas.

J. A. Neves Cabral, Meia-Lua da Costa de Caparica..., Junta Distrital de Setúbal, 1969

Com isto a quantidade de materiais usados na contrução do meia-lua são adaptados, por um lado, ao tamanho do mesmo, para suportar a sua própria estrutura, e, por outro lado, ás condições em que é utilizado, para resistir ás condições externas, tanto em repouso como em actividade. 

Saveiro da costa norte, "Sempre vim", 1920.
Museu de Marinha

A forma e o tosado nos meia-lua, que se acentua de norte para sul de Portugal, atingiu na Costa da Caparica o máximo da sua expressão, resultando na elegante embarcação cujos arqueado, verticalidade, e quase igualdade da altura das bicas a torna inconfundível, mas não exclusiva.

Barco de mar

Quanto à funcionalidade, o típico barco de mar, ou da arte (se referirmo a xávega), no caso, é uma embarcação de uma certa robustez com morfologia adaptada à pesca no mar e às manobras adequadas a essa actividade segundo as características do litoral onde é executada.

Arrais Ançã perscrutando o mar.
200 anos da Costa-Nova

Este, barco de mar, na costa portuguesa, é um saveiro. E se quisermos ser breves, desde as bateiras da costa vareira até à barca da arte xávega do Algarve, temos meias-lua de norte a sul de Portugal.

Costa da Caparica, meia-lua na vaza ao pôr-do-sol.
Delcampe

Portanto os barcos típicos tradicionais da Costa da Caparica são, ou foram, barcos de mar, saveiros na maior parte, e meias-lua se construidos com a arqueação típica até à década de 1910, com golfiões à ré, e depois, cerca de 15 a 20 anos, quando as dimensões se reduzem e aproximam dos oito metros de comprimento.

(Instantaneos do sr. Alberto Lima)
Costa de Caparica, Alberto Carlos Lima, pescadores lançando uma embarcação ao mar, década de 1900.
Arquivo Municipal de Lisboa

Os maiores, de pouco mais de 10 metros, construídos na segunda década do século 20 e mesmo depois, têm o tosado mas não o arqueamento.

Costa da Caparica, Saíndo para a pesca, ed. Lif , 2
Delcampe

Os menores, de cerca de 5 metros, mais recentes, meias-lua ditos "de bicas curtas" ou "sem proa adunca",  são variantes dos meias-lua que tentamos definir no nosso purismo, que apesar de sincero arrisca ignorância.

Costa da Caparica, colecção Passaporte-Loty n° 66, Pescadores arrastando o seu barco, c. 1960.
Delcampre

Poderiamos dizer, os primeiros antecipam-no. Os segundas dele descendem. Mas seria falso.


 Rui Granadeiro, 19 de janeiro de 2020


Tema:
Saveiro meia lua

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

O Livro do Monte

Coisa feita para não ser lida — disse dos prefacios não sei quem. Cita-se o dito, e leem se os prefacios. É que ha prefacios e prefacios: ha os que não acabamos de lér, os que vemos apenas uma vez, e os que relemos. Quem ha, que os conheça, que não tenha quasi decorado aquelles deliciosos prologos de Garrett? Este, que o é tambem, apesar do auctor o não baptisar, este prefacio do Livro do Monte é dos que se hão de reler.

Bulhão Pato por Alberto Carlos Lima.
Arquivo Municipal de Lisboa

No frontispício da sua obra abriu o poeta esta formosíssima porta, lavrada no mais puro e transparente marmore da nossa terra, e engrinaldou-a com os elegantes arabescos da sua pujante e donosa phantasia. Ao defrontarmos com ella, paramos, e sentimo nos alli presos, como em frente das portadas gothicas das velhas cathedraes, que admiramos á entrada, e a saída tornamos admirar. 

Diversa na forma não destoa, concorda em tudo com o interior do monumento; a prosa rivalisa com o verso na força, na viveza do colorido, na correccão do desenho, na largueza e espontaneidade do traço, no alto sentimento esthettco. Poesia sem rimas, mas na mesma lingua e com a mesma superior inspiração!

Aquella arvore que alli vemos, como elle a descreve e pinta, ondeando a copa trondeada, é symbolica: — diz-nos, representa para nós, o livro que por ella entrevemos. e não so livro, mas a obra toda do poeta, e toda a sua vida. É uma suggestão. Na sua forma, atravez da sua ramaria, ve elle um mundo phantastico, que ja foi realidade, e de que hoje apenas restam no seu espirito recordações e saudades! 

Vista de Caparica, tomada dos Capuchos.
Bosspostcard

Felizes ainda os que, chegados ao outono ou ao inverno, podem voltar as costas ao futuro, prolongar os olhos pelos aureos dias da evolada primavera, e evocar as imagens queridas d'então, marcos miliarios da vida, que nos apparecem ao longe, umas com lagrimas, outras com sorrisos, mas para nós todas formosas, todas immortaes!

É uma georgica como as outras — um primor d'arte, e uma pagina mais a acrescentar ao opulentíssimo Livro d'oiro dos prosadores portuguezes. Está ali impressa, cravada fundo, a mão nervosa e potente do grande escriptor, do eximio artista, do mestre. 

Prosa fidalga dc raça, não é só meridional, é portugueza, e disso se ufana, e com isso triumpha: que não somos nós pobres, que precisemos estender a mão humilde a vaidosos extrangeiros. Faz gosto vel a aqui, e apascentar nella os olhos: é como um chrysol, que os purifica das impurezas com que os traz encurvados a vista de tantos empestados e feios enchurros. 

Costa da Caparica, Peixeiras, 1901.
Imagem: Biblioteca Nacional de España

E os que, como nós, teem este vicio de amar a sua terra, se se comprazem na leitura dos velhos prosadores e poetas, não sentem menor prazer, quando encontram, mantida e honrada, nos escriptores contemporaneos o grande tradição nacional, e véem neles fiança de que os Sousas, os Vieiras, os Bernardes e os Castilhos, terão successores na  alta representação, no grande senado das lettras portuguesas.

*
*     *

Como se fez esta poetica e formosa lingua, como cresceu e frondejou, essa historia esta escripta e documentada nas suas obras pelos nossos poetas e prosadores. Fez-se na terra, e nos mares, na Europa, na Africa, na Asia e na America; na guerra e na paz, mas, por ventura, mais com aquella do que com esta. Viril e retumbante, tem a sonoridade das vozes de commando, e sente-se, quando a ouvimos, como o sibillar do vento e das balas, nas procellas e nos combates. 

Roque Gameiro.org

Povo de soldados e marinheiros, não amputamos as palavras, antes lhes prolongamos o som, como quem tem que fanar no fragor da peleja,contra o vento, de navio para navio, da terra para o mar. Notou o um grande escriptor — Edgar Quinet — assistindo, nas nossas cortes, a uma sessão tumultuosa, em que as vozes dos oradores, — vozes de tempestade — troavam como a artilheria dos campos de batalha, d'onde esses tribunos voltavam. 

— Vozes roucas de marinheiros! — disse elle.

Se tem a energia e a força, possue lambem a graça, e a harmonia, a suavidade e a brandura da nossa terra, das nossas floridas veigas, das nossas paizagens verdejantes, da nossa vida e dos nossos costumes — epica, altiva e magestosa nos Luziadas, amorosa e cheia de amenidade nos poemas de Rodriguez. Lobo, rustica, fragueira, e alegre, nos autos de Gil Vicente, que n'estas assembleas das Musas tambem os campos. os montes, e as serras enviam os seus delegados.

Costa de Caparica, Alberto Carlos Lima, pescadores lançando uma embarcação ao mar, década de 1900.
Arquivo Municipal de Lisboa

E se em alguns traços das suas feiçóes reconhecemos o cunho profundo, a impressão das arestas vivas da cruz da espada, noutros sente se a amorosa, a adorava!, a divina influencia d'outra cruz — a de Christo, que ambas empunhámos, com ambas combatemos, e com ambas vencemos 

Esta longa e sinuosa costa — enorme varanda, debruçada sobre o Oceano, que nos fadou navegadores e aventureiros, e este mar que nos cerca, imprimiram á nossa raça — á raça poriugueza — o cunho especial, que a distingue; foi como urna tempera, que apertou e concentrou as energias intimas do caracter nacional.

Vivendo ao lado do Hespanha, podendo estender a mão da nossa terra para a sua terra, não nos confundimos com os hespanhoes. Os extrangeiros, que não nos conhecem, confundem-nos. na sua desdenhosa ignorancia: os que vêem de perto os dois povos, distinguem, percebem as differenças.

Costa de Caparica, Alberto Carlos Lima, pescadores puxando uma embarcação para terra, década de 1900.
Arquivo Municipal de Lisboa

Serenos na paz. furiosos e indomitos na guerra, temos a confiança dos fortes. a melancolia dos concentrados, a esperança dos sonhadores. Raça muito original, quando a Europa da Renascença deslumbrada voltou os olhos para a Greda antiga, íamos nós sulcando os mares caminho do Oriente, e abriamos ao mundo moderno, com o nosso esforço. com as nossas espadas, as portas do futuro! Finda a tarefa. terminada a epopea, fechamol a com chave d'oiro — os Luziadas — monumento grandioso, e sublime epitaphio das nossas glorias! 

A grande obra portuguesa na civilização moderna, ninguem a pôde negar — ficou eternisada na historia, glorificada pela poesia: Valeu aqui a penna á espada, que, se assim não fóra, tambem da gloria nos esbulharia a humanidade agradecida. 

Costa de Caparica, Alberto Carlos Lima, colégio do Menino Jesus e casas típicas de pescadores, década de 1900.
Arquivo Municipal de Lisboa

A lingua em que se narram taes factos é, como elles, immortal, e os seus monumentos mais duradoiros do que o marmore e o bronre, ficarão attestando ás porvindoiras edades os portentosos feitos d'este povo, que, pequeno no território, foi grande na terra e nos mares, hasteou o seu pendão e fundou colonias nas terras africanas, descobriu o caminho da India, aproou com as suas esquadras ás terras de Santa Cruz, e alli levantou um novo imperio; e em todas estas emprezas, cada uma das quaes bastaria para a gloria duma nação, deixou memoria eterna do heroismo dos seus soldados, da magnanimidade dos seus capitães!

A Praia do Sol, Panorama dos Capuchos, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 107, década de 1930.
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É, pois, nesta riquissmta lingua — manancial tão abundante e generoso, que o não esgotaram todos os que n'ella têem bebido, desde Fernam Lopes até Camillo Castello Branco — que são esctiptas as Georgicas e as Lyricas, a que Bulhão Pato, o eminente poeta, colligindo as, deu o nome de "Livro do Monte".

Zacharias d'Aça.


(1) Occidente n.° 647, 15 de dezembro de 1896

Leitura relacionada:
Bulhão Pato, Livro do Monte, georgicas, lyricas, Lisboa, Typographia da Academia, 1896

Informação relacionada:
Bulhão Pato na colecção da Hemeroteca de Lisboa
Dicionário Histórico, Corográfico, Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico, Lisboa, João Romano Torres, 1904-1915
Occidente n.° 650, 20 de janeiro de 1897

Tema:
Bulhão Pato