quinta-feira, 28 de abril de 2022

O cruzeiro do lugar da Costa

O cruzeiro que existe hoje à entrada do cemitério da Costa da Caparica é uma cruz latina de cantaria composta por quatro elementos simples de secção quadrangular. No topo da haste a travessa é o único  elemento decorado com friso em baixo relevo que enquadra a sigla INRI na face e JESVS no verso. O conjunto liga-se entre si, por um perno interior em metal cravado na travessa e que atravessa a haste cimeira, o braço e liga à haste maior.

O cruzeiro da Costa da Caparica à entrada do cemitério.
Paulo Zé Silva (fb)

A haste tem junto à base três datas anuais gravadas com emolduramento, respectivamente de baixo para cima:
  • 1780 - data gravada na construção do cruzeiro, assinala um facto, evento ou benefício excepcional não identificado (safra importante, abolição de imposto sobre o pescado, acontecimento religioso?), provavelmente o estabelecimento definitivo da comunidade de pescadores na Costa;
  • 178  - data (incompleta) relacionada com a primeira e gravada na construção do cruzeiro, previa um acontecimento dentro dos anos seguintes na mesma década da anterior (a construção/consagração da ermida?) e que não foi registado, ou que ocorreu também em 1780, ou que não teve lugar, reforça o carácter religioso do monumento;
  • 1848 - data da inauguração do cemitério (na sequência do decreto de 28 de setembro de 1844 em que tinham sido proibidos os enterros nas igrejas e imposto o depósito dos restos mortais dos falecidos, depois de registo do óbito e obtida licença sanitária, em cemitérios construídos em campo aberto).
Os blocos que compõem o cruzeiro são simples, o que  teria facilitado o seu suposto transporte por barco.

Saveiro da Costa.
Caderno de Todos os Barcos do Tejo, tanto de Carga e transporte como d'Pesca, por Joao de Souza, 1785.

O todo assenta sobre uma base circular simples, com quatro degraus, que parecem antigas mós sobrepostas.

De notar, a altura da haste, demasiado longa e desproporcionada e em relação aos outros elements, indica que o cruzeiro estaria originalmente enterrado no areal e manteria assim invisíveis as duas primeiras inscrições. Poderiamos supor que quando o cruzeiro foi desenterrado e mudado para junto do actual cemitério, as inscriçōes foram descobertas e o ano de 1848 ano foi então gravado.

Apesar de bem conservado, o monumento, está mal apresentado, e necessita de tratamento e melhores cuidados. A pintura das inscrições, a preto, desborda os limites das gravações e a base está envolta por uma espessa camada de cal branca (e ainda bem, a má apresentação dos monumentos tem-se revelado um método eficaz para a preservação de património, tendo em conta quantidade de intervenções com resultados lastimáveis no concelho).

Na véspera de Natal de 1868, Bulhão Pato (e não o Pablo Neruda que se senta hoje no miradouro da estrada do Grilo) dedicou ao cemitério da Costa da Caparica uma das suas mais belas e sentidas prosas poéticas, Cemitério de pobres, mas não menciona o cruzeiro.


Rui Granadeiro, 28 de abril de 2022

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