terça-feira, 21 de novembro de 2017

Cemitério de pobres

O cemitério da Costa de Caparica está situado proximo duns rochedos; nesses rochedos as aves de rapina soltam de quando em quando gritos dissonantes e sinistros.

Costa da Caparica, Bairro de Santo António e Foz do Tejo, ed. Passaporte, 2, década de 1960.
Imagem: Delcampe, Oliveira

Não ha ali nem uma columna de mármore, nem uma lapide humilde que seja; mas nem por isso lhe faltam memorias de saudade. 

A relva arrancada neste e naquelle ponto, e uma cruz cravada no meio desse ponto, lá nos diz ter havido mão solícita que foi assignalar o sitio onde lhe ficou um ente querido. 

A cruz é formada de um pedaço do remo estalado nas fainas do mar, ou dum fragmento do barco, companheiro batido também nas tempestades, e que um dia uma onda temerosa arrojou e despedaçou sobre a praia. 

A Praia do Sol, Alando a rede, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 106.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Não falta a coroa, amoravel offerenda de corações que adoraram aquelle que já não vive; — coroa não de perpetuas dobradas, nem de saudades nascidas no jardim tratado com esmero, mas de junco silvestre enlaçado com a flor da joina e com as rouxas florinhas do matto rasteiro.

Os ciprestes mal medrados pela visinhança do mar, agitam a copa esguia, curvando-se e projectando a sombra multiforme na terra batida do campo-santo.

Quem vive naquellas choças? Quem labuta constantemente com as vagas a braços com a morte, tendo em paga a miséria.

Costa da Caparica, Vista geral do Bairro de Santo António e Caparica, ed. Passaporte, 74, década de 1960.
Imagem: Fundação Portimagem

Quem só vê como um relâmpago neste mundo o sol das alegrias, deve olhar com dolorosa voluptuosidade para aquelle chão humilde onde o espera finalmente a paz á sombra de Deus.

24 de dezembro de 1868, Bulhão Pato (1)


(1) Cemitério de pobres, Folha dos curiosos n° 3, janeiro de 1869

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