Rumoreja doce, a onda, em embalo e acalento. Dedos de espuma afloram a epiderme da terra, em caricias longas de namorado. O sol mordisca ao de leve a tona glauca das aguas, irisando a crista franjada das vagas pequeninas. Gaivotas, aos bandos, abatem as azas pandas sobre a campina movediça e mergulham os colos alvos na babujem do engodo, gualdindo solregas grandes tassalhos de peixe. Ao largo, o mar, percorrida toda a gama dos verdes, vai acabar azul, confundindo-se com o ceu. Passam revoadas de alciones. É a alegria da manhã.
Na Costa da Caparica - Alguns aspectos da vida do pescador (cliché de A. Santos) A Batalha, n.° 21, 21 de Abril de 1924 |
Na praia, sobre a areia loira, garotos tisnados, como santolas loucas, retouçam ao sol. Os barcos varados, brilhantes de côres, trescalam a maresia. Dos casebres negros, encolhidos contra-o-vento, vem a falacia cantada do mulherio e um fartum acre de peixe e alcatrão. Velhos em farrapos, faces rugosas, cobertas de liquens do, mar, ou glabras polidas como rocha batida da vaga — compõem serenamente as redes trigueiras.
Surge agora um grupo de homens falando alto, barbaramente. Molda-lhes o tronco solido uma sueira grossa e a cabeça chamorra ocultam-na no longo barrete, herdado dos seus avós do Oriente remoto. É a companha. O mestre, um alto, ruivo, tem um sueste que brilha e todos levam á vela as pernas vermelhas, velosas.
— P'ró mar?! perguntam os que ficam, na quietitude marasmada do sonho.
— P'ró mar ! — respondem os que seguem para a labuta moirejada, para a aventura, quiçá para a morte. E lá vão gingando, nodoa de sombra na claridade da praia.
Acomodam-se os utensilios a bordo.
— Arreia ! — E o barco desliza suavemente por sobre os paus encebados. Feita a manobra, a postos a companha, ao sinal da largada, todos dizem:
— Voga!
O mar tem afagos de extranha volupia ao beijar rochas hirtas, torturadas. Singram ao largo velas de purpura, fulgindo ao sol, e outras cinzentas plumbeas, como ceu de tempestade. É assim auspicioso e agoirento o espectaculo do mar.
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Ferrado o pano, o barco apoitou, que o fundo fofo de algas era proximo. Á proa, o-do-remo-da-roga vinha espalhando mancheias de engodo, num gesto largo de semeador. E começou a faina da pesca.
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O mar é a grande oficina da liberdade. Onde quere que deitem as suas redes ou mergulhem as suas linhas, os que dele vivem e nele morrem, nunca ouvem: — "Alto! Isto pertence-me !" O — "é meu" — não se diz no mar. O mar é de todos. Não tem leis, nem balizas.
O pesqueiro que hontem foi farto, hoje está deserto. Vamos que o mar é largo e lá em baixo reina a abundancia!
Emigram as especies marinhas, veem outras novas; a tempestade afugenta e mata os pescadores, logo a bonança os alicia e favorece. É assim o mar, onde tudo é mudavel e transitorio e só constantes a sua infinita vastidão e deslumbrante riqueza. E mais — o seu augusto misterio...
Que o mar tem indefinidas, espirituais influencias nos seres e nas almas, sobretudo — nas ideias. É um eterno gerador de beleza e pira onde arde constante o foge da liberdade. Até onde chegam as suas emanaçães sadias, a vida tem uma agitação promissora. Os continentes que o mar penetra e recorta são os mais progressivos, aqueles onde as ideias dc liberdade florescem com mais pujança. Exemplos? Olhemos para, o mapa do mundo.
O mar é o simbolo da Revolta e da Pureza. Não ha dejecto que o manche, nem obstaculo que não derrube.
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Acabara a pescaria. No fundo do barco a farta colheita — triunfo daquela tarde — fulgia nas escamas brilhantes do pescado, que manchas baças de epidermes viscosas cortavam. Viam-se peixes de todos os tamanhos e das côres mais bizarras, desde o safio, longo, sombrio, coleante, ennovelando-se em contrações agónicas ao peixe-rei, pequenino, vermelho-tenso, saltitante e brincalhão como um menino folgado. O mestre, agarrado ao remo da espadela, mão em pala sobre os olhos claros, murmurou para companha:
— Cia!
Havia que virar de bordo rápido. Uma aragem fria arrepiava a flor das aguas, cortando; e uma mancha de tinta alastrava no horizonte, para o Sul.
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Foi assim: O vento cresceu; tiveram que ferrar a vela e apear o mastro. Começou a cavar vaga, abrindo beiçanas de chaga com pús e gangrena nos bordos A abobada do ceu desceu mais e, de negra que era fficou amarela esgazeada. Ouviu-se, a principio ao longe, a restolhada dos trovões. Depois, mais perto, cada vez mais perto, o estalido seco dos coriscos, abrindo clareiras nos ares, logo seguidas do ribombo soturno.
O vento cresceu ainda. Chuva, em cordas grossas, vivas, caia. Alijada a carga, o barco era um ponto negro, longo tempo oculto agora nos desfiladeiros lugubres, presagos das ondas, logo projectado para o alto no dorso sombrio da vaga.
Deveria ser noite já. A tragedia da noite, em que se é mais só e desapercebido, para lutar com a dôr. O barco derivava á tôa. Ele só e a imensidade em combate singular. Dentes cerrados de anciedade, olhos pávidos de terror, dorsos abroquelados ao peso da desgraça, suando, resfolegando, praguejando e rezando — a companha ora esgotava o barco, ora se atirava para um bordo para o equilibrar, ora caia de bruços quando um golpe da vaga empinava ao alto o esquife. E assim esteve horas, na agonia.
Depois, o mar, enraivecido, torvelinhou, comprimiu mais, num abraço de desespero, a fragil presa. Rangeram as taboas, rugiram os homens e, num ultimo arranco, o ponto negro desapareceu na vastidão imensa do mar em furia.
Na praia, encharcada, mulheres de negro, com os filhos ao colo, gritavam:
— Misericordia!
O heroismo ignorado da brava gente do mar é temperado em beleza; mais — em sacrificio. Mal enxutas as lagrimas de dó pelos que se foram, voltam os pescadores á labuta, ao ganha pão dos seus, á paixão do mar. Face á Dôr e á Morte, são altivos, porque, mais do que quaisquer outros seres humanos — são livres. O mar que lhes dá pão e ensino, gozo para os sentidos e jazida na morte, dá-lhes tambem — nobreza. (1)
(1) A Batalha, Suplemento Literário e Ilustrado, n.° 21, 21 de abril de 1924
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2 comentários:
Boa tarde Amigo Rui Granadeiro. Acabei de ler este fantástico artigo de A Batalha mas que não vem assinado..sabe quem escreveu* o relato da faina termina com um naufrágio...mas não é o do Pensativo? será outro...e tenho uma dúvida, a certa altura o autor diz que sobe o pano da embarcação...ora os saveiros da Costa não tinham velas..será da Costa este documento?é que eu queria partilhar nas Memórias... Obrigado e Um grande Abraço do João Raimundo Gonçalves
Caro amigo José Raimundo Gonçalves,
Relacionado com a Costa da Caparica, com certeza, são as fotografias de António Santos que acompanham o texto. Infelizmente não são de boa qualidade.
O texto penso que seja de Mário Domingues, que residiu durantre muitos anos na Quinta de Santo António, e que publicou em A Batalha, Suplemento Literário e Ilustrado a partir de 1923. O estilo em que está escrito também lhe corresponde. Embora tenha assinado diversos artigos, não foi o caso deste.
Quanto à história, penso ser fantasiosa para enaltecer e dercrever a vida dos pescadores, dentro do tema anarco-sindicalista, a linha editorial da revista.
A descrição do barco, talvez uma bateira, e da arte, também não correspondem ao praticado então na Costa da Caparica.
Um grande abraço e um excelente dia.
Rui Grandeiro
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