— Calamento é, pois, limite de andanças e anseios, traçado pela rotina do pescador.
Costa da Caparica, Entrando no mar, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, s/n, cliché João Martins |
De novo o Deus te guie fez proa ao mar, e o calador foi folgando cabos e pondo coiros a flutuar de oito em oito cordas...
Praia do Sol, Caparica, ed. José Nunes da Silva, s/n Imagem: Delcampe, Bosspostcard |
A bica da vante está voltada ao sul. As mãos do calador atam a corda à rede. Vão descer as primeiras malhas... Todos se descobrem. E o arrais diz:
— Vai em louvor de Nossa Senhora do Cabo!
Braça a braça, as pandas da rede tocam na água e todo o tecido é luz, é prata, fosforecendo em todos os quadradilhos e rasgões. Cortiças sobre cortiças caiem das mãos do calador; chumbos sobre chumbos, das do vareiro, que fez novo trajecto da vante à ré.
Num ritmo calmo, compassado, os remos são puxados com brandura. Tem garbo, tem galhardia, assim, o meia-lua, a singrar para o sul! Chega a vez de o saco, de malhas fechadas e escuras, ser arrumado pela borda fora... E é que é mesmo — mas pela borda contrária. A espadilha flecte agora numa manobra: o cerco acentua-se. Rema-se na sóta um pouco mais.
Cabazeiros e almocreves, transportando recoveiras, canastras e sarricos, esperam o meia-lua. Três catraios, endemoninhados, brincalhões, salpicam o pessoal nas correrias. Barafusta-se. Sobem ameaços. Mas o jogo continua...
"Gigas" (Costa de Caparica), Álvaro Colaço, Objectiva nº 7, Dezembro 1937 Imagem: Alexandre Pomar |
O Deus te guie vence a rebentação e aporta de ré. O grosso dos homens bota pés à cinta e pula para o areal. Toda a companha se divide em dois grupos: o da banda panda e o da panda barca. Situam-se a uma distância como duzentos metros. Os fedelhos voltam os xalavares e os homens escolhem o seu cinto para para o puxa-puxa. O arrais percorre os dois alares, a saber distâncias.
Costa da Caparica, Almada, Passaporte, 60, Arribação dos pescadores após o lançamento das redes |
— Ala a panda barca!
O pessoal do sul, firmes os cintos, e, de peito ao mar, recostado na tala de lona, recua, recua...
Três aselhas e seis nós, cicatrizados na corda, chegam ao mar. Uma voz avisa o arrais:
— À mestre, caçámos trinta e seis cordas!
Trinta e seis cordas, na panda barca, significa que foi atingido o par com o lado norte, vindo a rede, agora, direitinha para terra.
A Praia do Sol, Alando a rede, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 106 Imagem: Delcampe, Bosspostcard |
— Ala da banda panda!
E os homens, às arrecuas, passinho sobre passinho, calcanhares firmados, troncos recostados, puxam as sirgas. Cada um, ao dar por findo o seu reboque, liberta a roldana e volta ao princípio. Vai caindo corda morta no areal, de ambos os lados.
Praia do Sol, C. Caparica, ed. José Nunes da Silva, s/n Imagem: Delcampe |
Um coiro, túmido e acastanhado, surge a lume de água, escorrendo limos: oito cordas vencidas ou sejam cento e quarenta e quatro braças. Pés fincados na areia resvaladiça, braços cruzados sobre a arca do peito, os homens forcejam, forcejam, mas a sirga cede tão lentamente como se arrastasse os infernos.
Costa da Caparica, Almada, Passaporte, 64, Pescadores enrolando as cordas da rede Imagem: |
De tão esticada, a sirga parece cabo de aço, vindo contínuamente babujada de sargaço e mexoalho.
— Atrasar dessa panda! — berra o arrais para os do norte.
Os pés amortecem de ligeireza, mãos nas talas, caras postas na névoa, que branqueia agora o céu. As sirgas vão-se aproximando, cada vez mais, cada vez mais.
Excertos do romance de Romeu Correia, Calamento, Lisboa, Editorial Minerva, 1950.
2 comentários:
Muito bom.
Não tenho o livro apenas exertos
Obrigada pela partilha
Abraço
Obrigado Falésia,
Um abraço
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