sexta-feira, 2 de abril de 2021

Armeiro de Bulhão Pato

A anglomania não se apoderara do poeta, apesar da moda e da tradição, já antiga. A sua espingarda d'então era uma bella arma hespanhola de Eybar — canos de "herraduras" — como nelles se lia em lettras d'oiro, e oitavados até um terço. D'oiro era a mira, e com elle discretamente ornada na bôcca e em volta da fecharia [das platinas] . Nada de oriental nesta ornamentação sóbria — um filete apenas. 

Bulhão Pato por Alberto Carlos Lima (detalhe).
Arquivo Municipal de Lisboa

O guarda-matto [a fecharia] tinha mola de segurança. Elegante e solida, esta caçadeira havia dado as suas provas: a esse tempo entrara já em muitas batalhas, e pouco antes Lopes Cabral — um athleta — matou com ella, em um dia, na Gollegã, setenta e cinco codornizes!


A Eybar succedeu Paris, e a espingarda que lhe conheço em effectivo serviço, ha mais de vinte annos, é uma Gastine-Renette, do systema Lefaucheux, cinzelada e acabada com a maior perfeição. Arma fina e de preço.

Raimundo Bulhão Pato, Miguel Angelo Lupi, c. 1880
Imagem: ComJeitoeArte

Gastine-Renette é úm dos mais illustres entre os fabricantes d'armas contemporâneos. Foi o "Arquebusier" de Napoleão III, o seu fornecedor predilecto de armas de caça e de guerra.

No cabide de armas do poeta vêem-se mais duas — uma de fogo central, belga, e outra Flobert-Remington.

Traiçoeira esta ultima. — Como os machos d'arrieiro morde e dá couce! O cão levanta, e o tiro vem, ás vezes, também para a cara do atirador! Perigoso systema. (1)

Paisagens de caça: Raimundo António de Bulhão Pato, 1829-1912;
sel. textos, org. e notas Nuno Sebastião.
cf. Bulhão Pato, Paizagens, Lisboa, Rolland E Semiond, 1871;

capa de Raphael Bordallo Pinheiro.
Ribeira Seca

Um dia foi que o "lever de rideau" — o prologo — esteve quasi a ser a tragedia. A espingarda de Bulhão Pato — era a de Eybar — deixara-a elle ficar em Allemquer, onde fora caçar, e Cabral, que de lá a trouxera, mandou-lh'a na véspera. Cabral —um grande e experimentado caçador — era tudo quanto ha de mais cuidadoso; podia-se-lhe chamar sem "calembour" [trocadilho], o rei das cautelas. 

Mas uma vez, todos erram, e quando Bulhão Pato, que tinha o costume de dar um fogacho á espingarda, antes de principiar a atirar, o fez sem a menor desconfiança, porque nenhum dos pistons trazia fulminanie, d'um dos canos saiu incendiada a polvora solta, mas o outro disparou um tiro a valer! Encaramo-nos Todos... Estavamos [felizmente] illesos.

O que nos valeu loi o ter elle, também prudente, disparado, como usava sempre, por cima da borda.

Bulhão Pato, Rafael Bordalo Pinheiro,
Album Glórias, 1902
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

— Hein! disse o poeta — de que nós escapámos! Mestre Cabral d'esta vez esqueceu-se!


Uma arribada em calma branca, revista Serões (detalhe) 1907
Hemeroteca Digital de Lisboa


E foi este, em tantos annos, o único accidente. que teve assomos de gravidade. (2)



(1) Zacharias d'Aça, O Tiro Civil n.° 135, sexta-feira 1 de abril de 1898
(2) Zacharias d'Aça, O Tiro Civil n.° 137, domingo 1 de maio de 1898

Artigos relacionados:
Retratos de Bulhão Pato

Tema: Bulhão Pato

Informação relacionada:
Bulhão Pato, Zacharias d'Aça, O Occidente n.° 717, 30 de novembro de 1898
Bulhão Pato, Paquita, Typographia Franco-Portugueza, 1866
Bulhão Pato, Livro do Monte, georgicas, lyricas, Lisboa, Typographia da Academia, 1896 
Francisco Zacharias d'Aça, Caçadas portuguezas: paizagens, figuras do campo
Lisboa, Secção Editorial da Companhia Nacional Editora, 1898



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