Paquita por Bulhão Pato. O conhecido poema de Bulhão Pato na sua forma definitiva, no seu uniforme para a Posteridade. Obra criticada, de valor estabelecido, não a rebuscaremos afim de lhe marcar o futuro, porque já lh'o vemos, e dos mais invejaveis no presente. (1)
o 0 o
Na solidão do Monte, onde hoje vivo ,
Soccorrer-me á memoria é o que me resta ;
Prazer ainda — embora pungitivo !
O sol, que eu via tanta vez em festa .
Agora apenas, sobre certas covas ,
Deixa cair uma sumida aresta !
Vae , no ponente , desfolhando as rosas ,
Que viçaram na fresca primavera ;
Pode ser que resurjam luminosas . . .
Vivamos da chimera — se é chimera
— De que no dia eterno as reveremos
Nas nebulosas da infinita esphera !
Ninguem pode affirmal - o , em negal - o :
Inda assim , no declivio da existencia ,
O sublime seria acredital - o !
Estamos vendo agora a quinta essencia
Do mysticismo nos modernos vates ,
Com as versaes , em plena florescencia !
Ninguem a gloria conquistou sem crença .
Ha pouco que um espirito elevado ,
Hontem ainda ! — uma bondade immensa ,
Um coração de justo , um inspirado ,
Alma de Christo , se tivesse crenças ,
Manchou de sangue o nome immaculado !
" Morrer . . . sonhar , talvez ! " — Longe o remorso
Do meu modesto e socegado leito !
Encarar o infinito , e sem esforço ,
O anhelito final soltar do peito . . .
Depois , por mão amiga , umas violetas
Postas ao lado do jazigo estreito !
Já o tenho marcado , e bem marcado ,
Sobre as ribas do mar , o cemiterio
Das lagrimas dos pobres orvalhado !
Dá sombra e paz ao meu eremiterio ;
Vibram de tarde ao vento os seus cyprestes ,
Como as cordas do mystico psalterio !
A luctar com as ondas agitadas ,
E a corrente contraria e pertinaz ,
Varreu - me o tempo as ambições sonhadas !
Ficou a derradeira , - mas vivaz ,
Meu unico laurel este epitaphio : "
Era um homem de bem . Descance em paz ! "
Batalhar ! batalhar ! Ao fim do dia ,
Quando mettemos na bainha a espada ,
Que resta da victoria , que sorria ?
Desfez - se em fumo a gloria conquistada ,
E da batalha ingente apenas ficam
Cicatrizes e lagrimas — mais nada !
Que vae nessa torrente lodacenta ?
Lodacenta , digo eu ! . . . O realismo ,
O proprio realismo , não inventa
Palavra obscena para tal cynismo ,
Que gera o tedio , e traz o suicidio ,
Sem as vertigens que produz o abysmo !
Com esgares truões uma caterva ,
Esfarrapando a tunica de Christo ,
No desenfreio da ambição proterva !
Fumosos , d ' um orgulho nunca visto ,
E charlatães , bufando panaceias ,
Para dar cabo mais depressa d ' isto !
" Camões , grande Camões , quão semelhante
Acho o meu fado ao teu , quando os cotejo ! "
Findando o teu poema , agonisante
Vias a patria ; assim a patria eu vejo ,
Ao terminar estas modestas paginas ,
Eu sombra , eu nada , que a teu pés rastejo !
As rispidas lufadas da invernia ,
E os bravos desgarrões do sudoeste ,
Passaram já . Rompeu um bello dia !
Perto d ' aqui , o pinheiral agreste
Manda um aroma salutar e vivo ,
Na branda viração , que vem do leste .
Não puxa o mar ao longe . Bom signal !
A lua veiu em pé , e as pontas finas
Cravando - se na esphera sideral ;
As estrellas tremendo e diamantinas .
Andam na Costa as negras de sardinha ,
Surgindo á flor das aguas crystalinas .
Cresceu a palmos o relvão em dias ;
Convida o chão ; faiscam as enchadas ,
Ao vivo sol que alegra as manhãs frias .
Cavar fundo ; rasgar essas chapadas ,
Que o vinho tem fundido , e a terra é prospera ,
Por todo este almaraz , ás baceladas !
Vão as redes ao mar . Alvorotados
Acodem , altarrões , os alcatrazes ,
E , aos cardumes nadantes e prateados ,
Atiram - se famintos e vorazes ! A monção é real !
Formoso dia ! Agora é certo o lanço .
Ao mar , rapazes !
A pesca de dezembro , a mais rendosa ,
A força dos constantes aguaceiros
Falhou , e foi a quebra desastrosa !
Os mestres d ' artes mais aventureiros
Não poderam romper de cara ao tempo
Que teve de peor os nevoeiros !
Alar ! Lá vem a rêde salvadora :
As mulheres , nos médos , mãos erguidas ,
Em prantos , a invocar Nossa Senhora .
Não tem de receiar perda de vidas ;
Mas se o sacco não pode com o peixe ,
Que enormes perdas se darão agora !
Ganhou a praia a mole reluzente ,
Sem ter nem leve sombra de avaria ;
No rude vozear d ' aquella gente ,
Que expansão de enthusiastica alegria !
Viva , saltando sobre a areia flava ,
Chega a todos a argentea pescaria !
Ao soar da buzina , dos casaes
Partem bestas de carga a toda a brida ,
Guisalhando atravez d ' esses juncaes .
Os cabazeiros , na afanosa lida ,
Avergados e a passo de balança ,
Jogam - se ao Monte , a governar a vida !
Ondula o mar azul . Cintra recorta
No chão do céo os picos elegantes .
Nos cachopos da barra , a vaga morta ,
Vem desfazer - se em frocos espumantes .
Ha nisto como um vago de alegrias . . .
Alegrias , visões de alguns instantes ! (2)
(1) O Antonio Maria, 1894
(2) Bulhão Pato, Paquita (2.a edição), Lisboa, Typographia da Academia Real de Ciências, 1894
Mais informação:
Marisa das Neves Henriques, Paquita
Leitura relacionada:
Bulhão Pato, Livro do Monte, georgicas, lyricas, Lisboa, Typographia da Academia, 1896
Tema:
Bulhão Pato
Soccorrer-me á memoria é o que me resta ;
Prazer ainda — embora pungitivo !
O sol, que eu via tanta vez em festa .
Agora apenas, sobre certas covas ,
Deixa cair uma sumida aresta !
Bulhão Pato, bilhete postal illustrado, colecção Artes e Lettras, Paulo Guedes & Saraiva, década de 1700. Delcampe |
Vae , no ponente , desfolhando as rosas ,
Que viçaram na fresca primavera ;
Pode ser que resurjam luminosas . . .
Vivamos da chimera — se é chimera
— De que no dia eterno as reveremos
Nas nebulosas da infinita esphera !
Ninguem pode affirmal - o , em negal - o :
Inda assim , no declivio da existencia ,
O sublime seria acredital - o !
Estamos vendo agora a quinta essencia
Do mysticismo nos modernos vates ,
Com as versaes , em plena florescencia !
Ninguem a gloria conquistou sem crença .
Ha pouco que um espirito elevado ,
Hontem ainda ! — uma bondade immensa ,
Um coração de justo , um inspirado ,
Alma de Christo , se tivesse crenças ,
Manchou de sangue o nome immaculado !
" Morrer . . . sonhar , talvez ! " — Longe o remorso
Do meu modesto e socegado leito !
Encarar o infinito , e sem esforço ,
O anhelito final soltar do peito . . .
Depois , por mão amiga , umas violetas
Postas ao lado do jazigo estreito !
Já o tenho marcado , e bem marcado ,
Sobre as ribas do mar , o cemiterio
Das lagrimas dos pobres orvalhado !
Dá sombra e paz ao meu eremiterio ;
Vibram de tarde ao vento os seus cyprestes ,
Como as cordas do mystico psalterio !
A luctar com as ondas agitadas ,
E a corrente contraria e pertinaz ,
Varreu - me o tempo as ambições sonhadas !
Ficou a derradeira , - mas vivaz ,
Meu unico laurel este epitaphio : "
Era um homem de bem . Descance em paz ! "
Vista panorâmica de Lisboa ocidental, Maria Guilhermina Silva Reis. Cabral Moncada Leilões |
Batalhar ! batalhar ! Ao fim do dia ,
Quando mettemos na bainha a espada ,
Que resta da victoria , que sorria ?
Desfez - se em fumo a gloria conquistada ,
E da batalha ingente apenas ficam
Cicatrizes e lagrimas — mais nada !
Que vae nessa torrente lodacenta ?
Lodacenta , digo eu ! . . . O realismo ,
O proprio realismo , não inventa
Palavra obscena para tal cynismo ,
Que gera o tedio , e traz o suicidio ,
Sem as vertigens que produz o abysmo !
Com esgares truões uma caterva ,
Esfarrapando a tunica de Christo ,
No desenfreio da ambição proterva !
Fumosos , d ' um orgulho nunca visto ,
E charlatães , bufando panaceias ,
Para dar cabo mais depressa d ' isto !
" Camões , grande Camões , quão semelhante
Acho o meu fado ao teu , quando os cotejo ! "
Findando o teu poema , agonisante
Vias a patria ; assim a patria eu vejo ,
Ao terminar estas modestas paginas ,
Eu sombra , eu nada , que a teu pés rastejo !
Paisagem, Caparica, Narciso Morais, 1951 Cabral Moncada Leilões |
As rispidas lufadas da invernia ,
E os bravos desgarrões do sudoeste ,
Passaram já . Rompeu um bello dia !
Perto d ' aqui , o pinheiral agreste
Manda um aroma salutar e vivo ,
Na branda viração , que vem do leste .
Não puxa o mar ao longe . Bom signal !
A lua veiu em pé , e as pontas finas
Cravando - se na esphera sideral ;
As estrellas tremendo e diamantinas .
Andam na Costa as negras de sardinha ,
Surgindo á flor das aguas crystalinas .
Costa da Caparica, Grupo de pescadores, Carlos Mendes, 1901. Biblioteca Nacional de España |
Cresceu a palmos o relvão em dias ;
Convida o chão ; faiscam as enchadas ,
Ao vivo sol que alegra as manhãs frias .
Cavar fundo ; rasgar essas chapadas ,
Que o vinho tem fundido , e a terra é prospera ,
Por todo este almaraz , ás baceladas !
Vão as redes ao mar . Alvorotados
Acodem , altarrões , os alcatrazes ,
E , aos cardumes nadantes e prateados ,
Atiram - se famintos e vorazes ! A monção é real !
Formoso dia ! Agora é certo o lanço .
Ao mar , rapazes !
A pesca de dezembro , a mais rendosa ,
A força dos constantes aguaceiros
Falhou , e foi a quebra desastrosa !
Os mestres d ' artes mais aventureiros
Não poderam romper de cara ao tempo
Que teve de peor os nevoeiros !
Costa da Caparica, O arraste da rede, Carlos Mendes, 1901. Biblioteca Nacional de España |
Alar ! Lá vem a rêde salvadora :
As mulheres , nos médos , mãos erguidas ,
Em prantos , a invocar Nossa Senhora .
Não tem de receiar perda de vidas ;
Mas se o sacco não pode com o peixe ,
Que enormes perdas se darão agora !
Ganhou a praia a mole reluzente ,
Sem ter nem leve sombra de avaria ;
No rude vozear d ' aquella gente ,
Que expansão de enthusiastica alegria !
Viva , saltando sobre a areia flava ,
Chega a todos a argentea pescaria !
Ao soar da buzina , dos casaes
Partem bestas de carga a toda a brida ,
Guisalhando atravez d ' esses juncaes .
Os cabazeiros , na afanosa lida ,
Avergados e a passo de balança ,
Jogam - se ao Monte , a governar a vida !
Costa da Caparica, Peixeiras, 1901. Biblioteca Nacional de España |
Ondula o mar azul . Cintra recorta
No chão do céo os picos elegantes .
Nos cachopos da barra , a vaga morta ,
Vem desfazer - se em frocos espumantes .
Ha nisto como um vago de alegrias . . .
Alegrias , visões de alguns instantes ! (2)
(1) O Antonio Maria, 1894
(2) Bulhão Pato, Paquita (2.a edição), Lisboa, Typographia da Academia Real de Ciências, 1894
Mais informação:
Marisa das Neves Henriques, Paquita
Leitura relacionada:
Bulhão Pato, Livro do Monte, georgicas, lyricas, Lisboa, Typographia da Academia, 1896
Tema:
Bulhão Pato
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