sábado, 23 de dezembro de 2017

Mário Domingues (1899-1977), escritor

Nascido em 3 de Julho de 1899 na ilha do Príncipe, mais exatamente na roça Infante D. Henrique, propriedade da firma Casa Lima & Gama, cuja sede e escritório ficavam em Lisboa, na baixa pombalina, era filho de mãe angolana, que se chamava Kongola ou Munga e era natural de Malange, tendo ido para a ilha do Príncipe como contratada (à força) com quinze anos.

Mário Domingues in Luís Dantas, Mário Domingues, o jornalista vagabundo...
Imagem: Calaméo

O seu pai, António Alexandre José Domingues, oriundo de famílias liberais, na impossibilidade de libertar a mãe, devido a uma vingança do capataz da roça, que não levou a bem que o tenha denunciado por maus tratos ao pessoal, enviou-o para Portugal aos 18 meses de idade, tendo ficado confiado à sua avó paterna, que se encarregou da sua educação [...] (1)

Conclui o curso elementar de comércio no Colégio Francês, em Lisboa. Provavelmente foi aí que conheceu Reinaldo Ferreira, com quem partilhou uma sólida e longa amizade, firmada em ideias, valores e projetos comuns.

Capa do livro A audácia de um tímido, Mario Domingues, 1923.
Imagem: frenesil loja

Espírito sensível, sagaz e profundamente humano, deixou-se conquistar pelos ideais anarquistas e participou a tivamente na imprensa que os defendia.

Foi chefe de redação d’A Batalha, colaborou no jornal anarquista A Comuna, do Porto, e na revista Renovação, entre outros. Também participou em grupos libertários, na organização do congresso anarquista da UAP e na fundação do Sindicato dos Profissionais da Imprensa.

A partir de 1926, as suas reportagens, artigos, comentários, contos e novelas aparecem publicados n a imprensa informativ a ou generalista de maior projeção, como o Século, Primeiro de Janeiro, Pátria, ABC, Ilustração, Magazine Bertrand, Civilização, Vida Mundial, Notícias de Lourenço Marques, Sol, etc. (2)

Aos 30 anos, Domingues tinha a tarimba de um veterano. Culto como poucos, poliglota (aprendera francês com Marcel Meunier, famoso correspondente do "Matin" em Lisboa e debicava inglês e alemão por influência dos marinheiros que aportavam ao Café Royal, com espírito de aventura aprimorado na parceria inesquecível formada com Reinaldo Ferreira (o famoso repórter X de que falarei noutro dia), personificava um novo género jornalístico emergente nas publicações portuguesas a reportagem participante. E este trabalho seria a sua coroa de glória [...]

Lisboa, Praça Duque da Terceira, Café Restaurant Royal, Alberto Carlos Lima (detalhe).
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

O projecto de Mário Domingues deverá ter começado em 1918, com uma farsa (entre tantas outras) de Reinaldo Ferreira para o efémero jornal "A Manhã".

O jornalista vestiu-se então de mendigo, foi fotografado a rigor, enganando durante a sessão alguns transeuntes, que lhe deixaram esmolas. Reinaldo era entusiasta, mas não se detinha no rigor factual (dizia-se, a certo ponto, que o R de Reinaldo valia por "Realidade" e o F de Ferreira por "Fictícia").

Isolou-se durante três dias e escreveu uma crónica pungente sobre a sua aventura como mendigo nas ruas da cidade pobre, num texto tão expressivo e cativante como falso. Na verdade, o futuro repórter X inventara praticamente toda a aventura, mas a sua reportagem foi discutida nos principais fóruns da cidade. 

É provável que a semente da ideia tenha perdurado no cérebro do amigo Mário Domingues, incitando-o a tentar um projecto semelhante, mas jornalístico [...]

À gandaia, reportagem vivida de Mário Domingues.
Imagem: Notícias Ilustrado n° 93, 1930 (Hemeroteca Digital)

Mário Domingues passou oito dias sem retirar a máscara de vagabundo.

Foi reconhecido uma vez no porto de Lisboa por um amigo que, enternecido, se ofereceu para o ajudar a endireitar a vida. Do ódio inicial face aos que se divertiam, a sua percepção foi evoluindo para uma aceitação gradual do statu quo.

Frequentou bares e tabernas. Relatou, com traços realistas, a generosidade desinteressada dos lisboetas, mas também o alheamento de quem passava por ele nas ruas e parecia não o ver. Conheceu ingleses e galegos, coristas e taberneiros. 

Recebeu propostas de emprego e ofertas desonestas. Foi aliciado com ofertas de emigração para o Brasil e para a América, que ponderou, mas recusou em nome da sua paixão pela cidade. (3)

Em 1930, Reinaldo Ferreira deu-lhe a chefia de redação do semanário Repórter X. 

Reinaldo Ferreira, Reporter X.
Imagem: Luís Dantas, Mário Domingues (Calaméo)

Depois de ter sido afastado, [Mário Domingues] fundou e dirigiu o semanário O Detective. 

Também fundou a "Editora Globo", de Lisboa, e publicou dezenas de romances policiais e de aventuras, sob diversos pseudónimos. (4)

oooOooo

"Não tardou que Tomé, o preto dançarino, executasse os seu primeiro "charleston" dessa noite, ante o olhar atento e assombrado de alguns mirones que tentavam apreender por que artes mágicas ao tantan rítmico do jazz, ele conseguia, sem uma falha na cadência, movimentar as suas pernas bambas, as pernas de trapo, conjugando-as com o balancear desconexo dos braços de pêndula."

Capa do livro [Stuart Carvalhais?] O preto do Charleston, Mário Domingues, 1930.
Imagem: a procura do colofão

"Era um boneco desarticulado que, movido por um maquinismo oculto, adquiria a flexibilidade de um farrapo abandonado ao vendaval impetuoso daquelas músicas de sertão africano, que floresceram por estranha afirmação de raça nessa Norte América intransigente e severa para com os seus negros."

in Mário Domingues, O Preto do "Charleston", 1930 (cap. II) (5)

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Mário Domingues contribuiu, ao longo da sua vida, para a inovação e o esplendor da literatura portuguesa.

Em 1960, publicou O Menino entre gigantes — a evocação da vida atribulada de um rapazinho mulato, quase negro, na sociedade lisboeta do início do século XX. Afastado da mãe africana, foi acolhido com afecto no seio da família paterna, mas não se livrou de preconceitos raciais, de vexames e de tormentos que abalaram o seu espírito.

oooOooo

É certo que só a escola lhe revela os meandros sinistros do preconceito racial, e José Cândido, felizmente robusto, poderá, à força de punhos, castigar aqueles que mais ostensivamente o ofendiam, mas nem por isso o choque deixa de existir.

Capa do livro O menino entre gigantes, Mário Domingues, 1960.
Imagem: Mário Domingues: Santomense filho de angolana...

E não só através do colega que recusa a ficar sentado a seu lado, porque o pai lhe disse que todos os pretos cheiram a catinga, mas também por via da revelação da colega Florinda, que lhe entremostra as intenções pérfidas de Cândida, que pretendia arrancar-lhe uma declaração só para revelar o seu desprezo pelos homens de cor. 

in Mário Domingues, O menino entre gigantes, 1960 (6)

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Nas décadas de 50, 60 e 70 do século passado, surgiram em Portugal uns livrinhos de aventuras extraordinárias, saídas da pena inspirada e prolífica de dois autores de nome inglesado (ou americanizado): Henry Dalton e Philip Gray.

O enredo das histórias, aparentemente sem fim, versava sobre as realizações assombrosas de alguns aventureiros de diversa proveniência. 

"A Volta ao Mundo por Dois Aventureiros", por exemplo, ficou a cargo de um belga (Roger) e de um checo (Alex)... Calcorrearam os Himalaias, os gelos polares, etc.

Coleção A Volta ao Mundo por Dois Aventureiros
Henry Dalton & Philip Gray (Mário Domingues), Livraria Civilização, 1957.
Imagem: olx

Anton Ogareff, o russo, protagonizava as "autênticas façanhas do maior aventureiro eslavo"

Autênticas façanhas de Anton Ogaref, o maior aventureiro eslavo
Henry Dalton & Philip Gray (Mário Domingues), Livraria Civilização, 12 vol.
Imagem: Alfarrabista Quinto Planeta

Billy Keller, O Rei do Far-West, era um caso à parte, pela consistência, densidade e dramatismo da sua existência [...]

Aventuras extraordinárias de Billy Keller, o Rei do Far-West
Henry Dalton & Philip Gray (Mário Domingues), Livraria Civilização, 12 vol.
Imagem: Torre da História Ibérica

Até que um dia, muito tempo depois, apurei que Henry Dalton e Philip Gray não eram ingleses nem americanos. Mais: nem sequer existiam.

O autor — o verdadeiro, solitário e denodado autor — daquelas histórias era um português, mestiço, humilde, trabalhador e talentoso, a quem se ficou a dever, já sem cobertura de qualquer pseudónimo, um enorme esforço de divulgação da História de Portugal, em estilo aprazível e documentado.

Era Mário Domingues [...]

Foram dezenas de "Evocações Históricas", a maior parte delas editadas pela Livraria Romano Torres ("Casa Fundada em 1885"), de saudosa memória... 

Evocações incluídas na "Série Lusíada", tais como as de D. Afonso Henriques - D. Dinis e Santa Isabel - O Marquês de Pombal [...]

Evocações históricas, Série Lusíada
Romano Torres, Livraria Civilização, etc.

Inês de Castro na Vida de D. Pedro - A Vida Grandiosa do Condestável - O Infante D. Henrique - D. João II - D. Manuel I - D. João III - Camões - D. Sebastião - O Cardeal D. Henrique - O Prior do Crato Contra Filipe II - A Revolução de 1640 - D. João IV - O Drama e a Glória do Padre António Vieira - D. João V - Bocage - Fernão Mendes Pinto - Fernão de Magalhães - D. Maria I - Liberais e Absolutistas - O Regente D. Pedro - Grandes Momentos da História de Portugal [...]


[Após décadas de pesado e injusto silêncio, a obra (histórica) de Mário Domingues começou - em boa hora - a ser reeditada pela Prefácio.]


Como crítico de Pintura, nos anos Vinte, distinguiu-se pelo ardor com que defendeu os Modernistas, então desdenhados pela opinião pública. 

Unindo-se a Fernando Pessoa, José Bocheko, Vítor Falcão, António Ferro e outros batalhadores pela renovação da arte em Portugal, teve a coragem de proclamar o excepcional valor de "proscritos" como Almada Negreiros, Eduardo Viana, António Soares, Jorge Barradas e Lino António. (7)

Quinta de Santo Antonio, Costa de Caparica (detalhe), ed. desc.
Vista da Rua do Norte, actualmente Rua Mário Domingues, onde o escritor residiu a partir de 1950.
"O Mário Domingues e a sua Mulher Maria foram grandes amigos meus. Era com eles que ia para a Costa da Caparica em pequena. Este teu post lembrou-me que o meu gosto por biografias histórias se deve muito às conversas que em miúda tive com ele!" cf. Helena Sacadura Cabral in delito de opinião.

Imagem: Delcampe - Bosspostcard

Editor, publicista, jornalista, tradutor, historiador, anarquista, mas sobretudo escritor, que o foi dos mais fecundos no panorama literário português desde sempre, de seu nome completo Mário José Domingues (ilha do Príncipe, 3 de Julho de 1899-Costa da Caparica, 24 de março de 1977), personalidade atualmente quase esquecida mas, em vários planos, tão fascinante como as consideradas das maiores do nosso século e, ultimamente, badaladas a preceito, realmente, depois de Camilo Castelo Branco, Mário Domingues é um dos primeiros casos de escritor profissional em Portugal, ultrapassando, em número de títulos e extensão de colaboração dispersa, a obra dos outros escritores profissionais seus contemporâneos, Aquilino Ribeiro e Ferreira de Castro. 

Um Dia Com… Mário Domingues
Programa sobre Mário Domingues, escritor natural da ilha do Príncipe, que menciona os aspetos mais relevantes da sua carreira profissional, 1 de agosto de 1970.
Imagem: RTP Arquivos

Efetivamente, nada do que ele escreveu foi gratuito.

E especialmente quando eram romances policiais e de aventuras, que apareciam assinados com os nomes de Henry Dalton & Philip Gray ­ —  com este pseudónimo escreveu 92 volumes — Marcel Durand, W. Joelson, Fernand d'Almiro, Fred Criswell, F. Hopkins, Henry Jackson, James Black, James W. Sleary, James Strong, J. W. Powell, Joe Waterman, John Ferguson, Max Felton, Max Parker, Nelson Mackay, Peter O'Brion, William Brown, Thomas Birch, Guida de Montebelo, Marcelle de Sérizy, C. De La Touraine, Clau Weber, Repórter Mistério e André Chevalier, entre muitos outros. (8)


(1) Mário Domingues: Santomense filho de angolana...
(2) Reporter X (Hemeroteca Digital)
(3) Oito dias na vida do jornalista vagabundo
(4) Reporter X (Hemeroteca Digital)
(5) a procura do colofão
(6) Crítica literária por Luís Dantas
(7) Torre da História Ibérica
(8) Mário Domingues: Santomense filho de angolana...

Informação adicional:
Romano Torres (Mário Domingues, FCSH/UNL)
Mário Domingues, Recordações do Café Royal, Lisboa s.n., 1959 (Projecto MOSCA)
Luís Dantas, Mário Domingues (Calaméo)
Mario Domingues vagabundo, Ilustracao n° 103, 1930 (Hmeroteca Digital)
Reporter X (Hemeroteca Digital)
Notícias Ilustrado n° 93, 1930 (Hemeroteca Digital)
António Domingues (fb) [v. nota final]
Authorizing Translation: The IATIS Yearbook
Agepor 11

2 comentários:

RAYA disse...

Boa tarde, estou a fazer uma pesquisa sobre alguns textos de Mário Domingues e gostaria de entrar em contacto com algum familiar - será que tem contactos? Muito obrigada, Raja Litwinoff

Rui Granadeiro disse...

Pessoalmente não disponho de mais informação, mas se consultar as referências no final do artigo é provável que encontre indicações que lhe permitam a procura desses contactos.