segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Elogio de Raimundo António de Bulhão Pato

O voto que me elevou foi para mim o adeus eterno a juventude que não volta. Senti, pela primeira vez. com o júbilo duma vitória, a dôr duma despedida. Saio com os olhos turvos de lágrimas, a porta de oiro da mocidade. Na cadeira académica que vim ocupar, palpitam, ressurgem, iluminam-se ainda as cinzas da mais nobre decrepitude que eu conheci. É a cadeira de Bulhão Pato.

No cemitério de Caparica, os srs. Roque Arriaga, o representante do sr. Presidente da República, e o dr.Júlio Dantas, representante do governo.
Imagem: Hemeroteca Digital

Quis o acaso, senhor supremo da vida e da morte, que à singular honra de o admirar eu juntasse a glória imerecida de lhe suceder. Venho cumprir hoje o primeiro dos deveres que essa sucessão me impõe. Venho pronunciar algumas palavras — que a velha praxe académica exige que sejam lidas — sobre aquele que foi um dos maiores poetas do seu tempo, a última relíquia, do neo-romantismo português, uma das figuras em que mais vivamente encarnou a alma generosa e ardente da raça.

Que a grandeza do assunto perdoe a pobreza do orador.

Bulhão Pato!

Dir-se-ia um desaparecido de ha trinta ou quarenta annos. Parece que o envolvem já as sombras longínquas do tempo. Temos a impressão de que nos resta dele apenas uma tradição remota. O seu perfil pálido, a sua cabeça de espectro coroada pela ténue névoa de prata dos cabelos, as suas mãos ósseas, compridas e trémulas, parecem surgir para nós através de duas, de três gerações distantes, como um eco do romantismo exausto, como a sombra de um daguerreotipo esmaecido, — feitos de vagas reminiscências, de traços apagados, de memórias confusas.

Elogio de Júlio Dantas a Bulhão Pato, Sessão Magna da Academia de Sciencias de Lisboa, 1913.
Imagem: Hemeroteca Digital



E, entretanto, Bulhão Pato morreu há um anno apenas. É uma figura de ontem. É um desaparecido de ontem. Ainda há trese meses, num dia de sol criador, numa atmosfera de oiro fluido, entre lufadas de poeira ardente, que mordiam, que queimavam, que abrasavam, eu o acompanhei ao pobre cemitério do Monte, a pé, subindo os córregos estreitos e pedregosos da Outra Banda. 

O enterro de Bulhão Pato. O cortejo a caminho do cemitério do Monte de Caparica, 1912.
Imagem: Hemeroteca Digital

Ainda há pouco eu saí confrangido da sua casa simples, da sua casa modesta, das quatro paredes quasi nuas onde o amigo de Herculano vivia, entre uma estante velha que bocejava a um canto e uma amendoeira florida e doirada do sol que parecia entrar, como uma bênção, pela janela entre-aberta. A minha mão sente ainda a pressão débil da sua mão.

Bulhão Pato por Alberto Carlos Lima.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Morreu ontem, é certo. Mas há quanto tempo, há quantos annos deixara iniludivelmente de viver esse grande espírito que encheu de bravura, de truculência, de pitoresco, de paixão, uma época que a tristeza byroniana cobria da sua asa negra e para a qual os poetas, estirpe de Júpiter, eram ainda uma expressão sagrada da divindade omnipotente!

Há quanto tempo estava morto, pelo anacronismo da sua própria existência, o "leão" da Assembleia Estrangeira e dos bailes do Rato, isolado agora no damasco desbotado das suas recordações, nas flores secas do seu passado turbulento, no bafio glorioso das suas atitudes, na retórica setembrista da sua eloquência admirável! Era esse anacronismo a razão suprema do seu isolamento. Fugira da geração actual, porque nada tinha já de comum com ela.

Pertencia a uma outra época, a um outro mundo. É nos outros que nós vivemos; — e êle vira morrer, cair em volta de si, alma a alma, vida a vida, a sua existência inteira. Tinham já desaparecido, na poeira impalpável do tempo, as bocas que êle beijara, os corações em que êle vivera, os braços amigos que o tinham amparado, as mãos leais que o tinham aplaudido. Olhava agora em volta: eram todos desconhecidos paia êle e êle era quási um desconhecido para todos. Entre o velho poeta e o mundo novo que o rodeava, nada havia já de comum. Eram estranhos um ao outro.

Restava-lhe — pobre decrepitude gloriosa! — refugiar-se no seu passado longínquo e viver com sombras. A sua saudade animava espectros. A sua palavra evocava mortos, Imobilizou-se. Cristalizou. Passaram por êle as modas, sem o atingir. O pensamento moderno aflorou o seu espirito cultíssimo, sem o penetrar. Manteve o tipo, a cabeleira, os gestos, o sentimento, a eloquência, o psiquismo do seu tempo.

Bulhão Pato por Alberto Carlos Lima.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Em 1912, respira ainda. voluptuosamente, a plenos pulmões, a atmosfera luminosa de 1840. Como essas velhas sedas salpicadas de pepueninas flores, que dormiam vinte, trinta anos nas gavetas das nossas avós, e onde parecia guardar-se, conservar-se indefinidamente, como uma relíquia, o resto dum perfume religioso e esquecido, — todas as palavras, todos os pensamentos de Bulhão Pato vinham doirados dessa "patine antiga", em lodos êles palpitava essa atmosfera morta de capela fechada, que não era ainda bafio e que não era já aroma, mas que o afastava, que o distanciava de nós, que relegava para outra idade, para outro meio, para outra época.

Como êle devia ter sentido, vivamente, a mágua de não ter morrido mais cedo! Como ele suportou, com resignação e com doçura, a agonia imensa de sobreviver a si próprio! Não. O tempo, não é transformando-nos que nos envelhece: é transformando, em volta de nós, tudo o que nos rodeia. A mais dolorosa impressão da velhice não vem da decrepitude; vem do isolamento. 

Desmorona-se à volta de nós tudo quanto nos era familiar; desaparecem, uma a uma, todas as imagens queridas; caem, como folhas secas de outomno, todas as afeições, sorriso a sorriso, coração a coração; e quando um dia, na obstinação de viver, olhamos em torno de nós, — como tudo está já mudado, como nos desconhecemos tudo, como tudo nos desconhece a nós, e como essa humanidade nova em que já se não criam afectos, cheia de estranheza e de hostilidade, nos cava fundo na alma a impressão viva da solidão e do abandono, a mais desoladora, a mais pungente, a mais dolorosa de toda a velhice humana! 

Bulhão Pato e Moreira de Almeida com outros cavalheiros no Largo das Cortes.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Há figuras senis que procuram ainda adaptar-se. viver na sociedade a que já não pertencem e onde são elementos estranhos; há velhos que se permitem a ilusão de criar afeições novas; que tentam penetrar-se do espirito moderno que os rodeia, que os solicita, que os envolve. Bulhão Pato, não. Imobilizou-se no seu passado, refugiou-se no seu anacronismo, conservou-se irredutível no seu isolamento. 

A voz do grande poeta era, há muito tempo, uma voz de além túmulo. As suas novas obras tinham já o ar carinhoso e envelhecido de póstumas. A geração que o entendia desaparecera há muito. Os sentimentos que o agitavam vinham do tempo do penteado à "polka" e dos bailes do Manleigueiro. As suas paixões vestiam-se de "organdi" côr de rosa e dançavam ainda ao som da rabeca do Mazzoni. 

Bulhão Pato no Monte de Caparica.
Imagem: RTP Arquivos

Tudo nele estava fora de moda. As suas próprias atitudes, os seus próprios gestos pareciam desenhar-se dentro da casaca de briche de Passos Manuel. A sua eloquência, a sua voz, a sua ênfase, pertenciam àquele Parlamento grave e retórico que Soto Maior deslumbrou com o seu "carrick" vermelho, e onde gesticulavam, cheias de anéis, as mãos pálidas de Garrett. 

Por isso o nobre académico que foi Bulhão Pato, desintegrado da sua geração e da sua época, verdadeiro prolongamento, verdadeira resonância sentimental de 1840, se conservou, até o fim da vida, uma figura admirável de pitoresco e de anedota. Era um sobrevivente; era um antepassado. Para o poder admirar, para o poder compreender, temos de recuar no tempo e de colocá-lo, em plena mocidade, em plena torça, em pleno brilho, dentro da sociedade a que pertenceu.

O melhor retrato que nos resta de Bulhão Pato pintou-o Columbano. É o poeta da decrepitude. Uns olhos vivos, argutos, negros, scintilam numa lace branca de apóstolo. A barba, como uma onda revolta de prata oleosa, cobre-lhe o pescoço devastado. As mãos, apoiadas na bengala, são reflexivas e enérgicas.

Retrato de Bulhão Pato, Columbano Bordalo Pinheiro, 1908.
Imagem: MatrizNet

Na expressão, que a doçura da velhice tranquilizou, advinha-se ainda uma relíquia do antigo pannache. Dir-se-há que na mesma face se juntam a velhice de Tolstoi e a velhice de d'Artagnan. É uma obra prima da pintura portuguesa. É a mais alta expressão que pode atingir, na interpretação da máscara humana, o génio dum pintor.

— Mas já não é Bulhão Pato. — O poeta da Paquita tem eternamente trinta annos. O poeta da Paquita não envelheceu ainda. Vejo-o, advinho-o, evoco-o. Tem os cabelos negros, a polpa do lábio vermelha e moça, o sol da Espanha a arder-lhe nos olhos, a pele doirada e húmida de seiva, o corpo firme e esbelto, o gesto impetuoso e largo. É o homem fatal do seu tempo. Ondula pelas salas, nos serões da Regaleira, nos bailes dos marqueses de Viana, passeando os olhos profundos, sacudindo a juba preta.

Raimundo António de Bulhão Pato,
Imagem: Hemeroteca Digital

O seu pulso é rijo como o aço; o seu olhar é macio como o veludo. Os homens temem-no; as mulheres enlanguescem ao vè-lo passar. Toma, em Sévres e oiro, o caldo de galinha das "sauteries" do Farrobo; soluça e geme, rodeado de saias de balão, os versos "se coras não conto"; e as mais belas mulheres, a própria madame Barrow, ministra da América, finge argueiros para que êle lhe sopre os olhos. Garrett, velho, postiço, espartilhado, ministro, rabujento, sonhando com a Ordem de Malta e penteando o chino de Londres, não as interessa já.

Ao deus que morre opõem o deus que nasce. Bulhão Pato é o Musset do Passeio Público, o Alfred de Vigny do Marrare de polimento. A sua pêra negra, a sua pêra impertinente de fauno esbelto, cofiada sempre por uma mão sólida e forte, enche de virilidade o seu tipo romântico. A fama do talento ilumina-o.

Bulhão Pato por Marciano Henriques da Silva
(museu Carlos Machado em Ponta Delgada).
Imagem: Alexandre Flores

É o pupilo de Herculano, é o amigo de Rebelo da Silva, tem a costela de oiro de Apolo. Cortejam-no nas ruas, amimam-no nas salas, querem-no  Parlamento, chamam-no da Academia. Patuleia, liberal, cheio de energia e de raça, a sua alma está com o povo, vibra com o povo, palpita com o povo. audacioso, eloquente, tem um dia na sua mão o poder, o domínio, a força. 

Mas a tudo renuncia a soberba da sua pobreza, o orgulho formidável da sua independência, poeta humilde tem gestos de grande de Espanha. Que importa o mando, que importa o poder, que importa a glória! Bastava que a vida lhe corresse entre um sorriso de mulher e uma taça de Champagne, entre uma ode de Horário e uma caçada às lebres.

E de manhã, antes do sol nascido, quando principia a cantar o tentilhão madrugador, a toutinegra barbiruiva, o pisco chalreiro, êle ai vai com o seu polvorinho e o seu chumbeiro, a sua espingarda e o seu cão de mostra, varejando nos carrascais as perdizes velhas, batendo nos baldios os coelhos encovilados. 

Raimundo Bulhão Pato, Miguel Angelo Lupi, c. 1880
Imagem: ComJeitoeArte

O panteista, perdido no seio da natureza selvagem, bebendo a largos haustos o vento agreste das montanhas, — a cada perdiz que abate, a cada lebracho que os dentes do cão sacodem, encontra um verso de oiro das suas "Georgicas", um ritmo carinhoso das suas éclogas cristãs, e a sua alma simples, a sua alma tranquila, a sua alma religiosa sobe num êxtase para Deus.

Não lhe peçam a filosofia da sua obra. Não lhe perguntem a razão da sua existência. Sente porque sente, vive porque vive, ama porque ama. O seu génio de instinto flutua entre duas emoções: uma mulher que sucumbe e uma perdiz que abale, um tiro que fuzila e um beijo que murmura, uma liga que foge e uma lebre que salta.

A natureza é para ele um festim dionisíaco; a mulher é para ele um mistério profundo. Entre esse festim e esse mistério, entre esse explendor e essa interrogação, oscila, palpita, estremece toda a obra de Bulhão Pato. Das "Poesias" as "Canções da Tarde", das "Paisagens" ás "Flores agrestes", da "Paquita" ao "Livro do Monte", essa obra flue, canta, explende, alaga, — agora melodiosa e doce, logo convulsa e violenta: florindo hoje em idílios, lampejando amanhã em sátiras: ora sóbria, ora truculenta; num dia caricia, noutro tempestade; mas sempre raça, mas sempre orgulho, mas fidalguia sempre. 

Bulhão Pato (1829-1912).

O patuleia pica-se de nobreza dos quatro costados. No seu anel esquartela-se o brasão dos Patos Riaes de Alcochete. Nas suas genealogias remotas surge, como um sorriso, o burel de Santo António de Lisboa. Esse burel humilde e essa fidalguia de berço unem-se, aliam-se, resurgem, renascem na figura do poeta. Dão-lhe a sua pobreza de franciscano e a sua soberba de príncipe.

Dão-lhe, acima de tudo, o seu grande, o seu imenso, o seu enternecido amor a terra portuguesa, ao sol de Portugal, ao povo de Portugal, que ele canta, que ele admira, que ele exalta, no seu ímpeto retórico, na sua ênfase castelhana, no seu gesto redondo, — nesse gesto instintivo, hereditário, de quem leva a mão a um talabarte para arrancar da bainha a espada de D. Fuas!

Pobre Bulhão Pato! Velho poeta grandioso em tudo, na figura, no talento, na pobreza e no orgulho!

Bulhão Pato, Rafael Bordalo Pinheiro,
Album Glórias, 1902
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Se hà Deus; se é certo que a morte nos ilumina, nos transfigura, nos rejuvenesce, — estou a vê lo, fidalgo, suntuoso, exagerado, espanhol, vestido num gibão preto de Velasquez, sacudir a juba, cofiar a pêra de fauno velho, avançar na luz ofuscante de além túmulo, pôr a mão sobre o ombro formidável de Deus e perguntar-lhe familiarmente: 

— "Rapaz, como vais tu?" (1)


(1) Julio Dantas, Elogio de Raimundo António de Bulhão Pato



Carta de Júlio Dantas sobre a escolha do poeta Bulhão Pato para Inspector das Bibliotecas e Arquivo, desistindo da proposta por não querer ser acusado de "disputar um cargo com um velho de 80 anos."
Manifesto Anti-Dantas

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