sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Da minha casa de madeira...

Eu tinha uma pequena casa de madeira no topo de uma duna da Caparica. O Equador não atravessa estas terras, as da Costa, de quintas e hortas que se quedam na base da Arriba [...]


A minha casa de madeira no topo de uma duna da Caparica foi feita num tempo que não tornará.

Entre a minha casa de madeira no topo de uma duna da Caparica e o mar em frente havia um outro mar [...]

A Praia do Sol, O mercado, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 109.
Imagem: Delcampe

Da minha casa de madeira no topo de uma duna da Caparica via um mundo que se perdeu tão irremediavelmente quanto ser homem a sério.

Como os camponeses que, em anos de Invernos de agruras, se juntavam no areal esperando que um arrais lhes concedesse lugar na arte. Os sorrisos de ver comer a prole quando a sardinha, o carapau e a lula se agitava na rede que vinha, puxado à mão.

Da minha casa de madeira no topo de uma duna na Caparica via passar Ti Palmira, a avó de um Capote que era fedelho descalço antes de ser estrela na TV, caminhando pela praia até a Fonte da Telha, Mina da Adiça, quase até à Lagoa de Albufeira mas não Alfarim, que é gente avessa ao norte e mais dados a sesimbrices, para trazer à luz futuros homens de cara sulcada de sal e sol.

Ti Adelaide Capote (modelo para o personagem Ti Palmira do romance Calamento de Romeu Correia).
Em fundo, Barcos e Varinas de Rogério Amaral, 1951.
Imagem: Costa de Caparica Memórias Vivas

A "Aparadeira", chamava-lhe, que quer dizer parideira, que quer dizer parteira, puxava redes e cordões umbilicais, cortando-os com a tesoura que levava consigo a palmilhar léguas, no bolso do avental.

Da minha casa de madeira no topo de uma duna da Caparica via passar, também em Janeiros de praguejar, homens e mulheres e crianças que se faziam a sul, debaixo de temporais que proibiam o mar, porque "A Lagoa de Albufeira dá todo o peixe que há na costa".

De caminho, a Fonte da Telha e a tasca do Camões que morreu pobre de fiar. Uma sopa, um copo de vinho e um quarto de pão por poucos réis, não me lembro ao certo, às vezes em troca de algumas bolas de vidro que davam à costa, trazidas das artes de Sesimbra pelas marés.

Fonte da Telha.
Imagem: Delcampe

Só à noite, breu de não ver nem Espichel nem Bugio, lançavam o chichorro, arte de malha apertada que trazia sardinha, eiroz, sargo, sargueta, linguado e tudo o mais que desse aquele mar mais pequeno.

Faziam-no, muitas vezes, debaixo dos tiros da Guarda Fiscal, porque os cães que são do povo mas do povo desdenham ao serviço de outros que os desdenham a eles foram, e serão, os mesmos de hoje.

Da minha casa de madeira no topo de uma duna da Caparica vi, incontáveis vezes, as mulheres dos pescadores, as mais belas de Portugal, dizia o poeta Bulhão Pato, que vinha com a desculpa de comer amêijoas, largar arriba acima, arrobas de sardinha na canasta equilibrada à cabeça, para vender às portas dos Capuchos, Vila Nova e, às vezes, Lazarim, trocar peixe por farinha no moleiro, solitáris presença de um lugar que é hoje encruzilhada.

Costa da Caparica, Alfredo Keil (1851 - 1907).
Imagem: Palácio do Correio Velho

Da minha casa de madeira no topo de uma duna da Caparica via o Bugio, Cascais. Estoril, Oeiras, o Monte da Lua. Agora não [...]


A minha casa de madeira no topo de uma duna da caparica contaria metade da minha vida [...]

Nuno Miguel Dias (1)


(1) Bilma Safari, julho de 2010 

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