segunda-feira, 19 de junho de 2017

Bulhão Pato, Madrugadas de caça, por Zacharias d'Aça (IV)

O nascer do sol no Tejo, o nosso formoso e grande rio, em dias de outono, é um dos mais encantadores espectáculos que os olhos podem gosar, e esta digressão, rio abaixo, até Belém, e d'ahi para o sul, era um delicioso "lever de rideau" das nossas caçadas, a que nem sempre correspondia o resto do divertimento. Nisto como em tudo.

Lisboa, Sol Nascente, Ivan Aivazovsky, 1860.
Imagem: WikiArt

Preferiam os barqueiros ir á vela, nós a remos. Não tínhamos a distracção da manobra — o cambiar do panno, o procurar o vento, o regular o leme e a escota — mas por isso iamos mais quietos, vendo tudo melhor e conversando.

Vue de la tour de Belem à Lisbonne, Jean-Baptiste van Moer, 1868.
Imagem: Sotheby's

Em matéria de conversar ha os que gostam de falar e os que preferem ouvir. Bulhão Pato é dos primeiros, eu dos segundos. O que eu sei não é novo para mim: o que os outros me dizem pode sel-o. E d'aqui não se segue que eu seja modesto, antes talvez se deva concluir que sou curioso.

Talento e palavra espontâneos, e sempre em acção, o poeta de todos os assumptos tira partido; e elle, que não é um naturalista, um sábio, é um fino observador da natureza, e na sua conversação o mundo real reforça e concretisa o imaginativo.

Assim como os companheiros, variavam os assumptos. Se eram artistas, músicos, predominava o lyrismo — S. Carlos, os tenores, as "primas-donas", os "maestros"; se nos acompanhava algum politico — caso raro, que os políticos atiram a outra caça — era a oratória tribunicia — José Estevam, Passos Manuel, Rodrigo, Rebello da Silva, Garrett; se iam mundanos, então bailes, amores e aventuras. Não faltavam assumptos para os quadros, nem ao artista as cores para os pintar.

Uma coisa havia prohibida na nossa sociedade — o silencio. Quando nós, ao largar da Rocha, nos conservávamos cinco minutos calados, Bulhão Pato protestava: — Leva de rumor! — dizia elle, apostrophando comicamente o nosso mutismo. Parece que morreu aqui alguém! Ó' Diogo, tu passaste mal a noite?

D. Diogo, d'uma antiga e nobre familia do Alemtejo, era um dos mais íntimos amigos do poeta. Era-o desde a infância: tinham frequentado juntos o collegio inglez da rua do Quelhas. Nascera na Índia. Os olhos e os cabellos pretos, os dentes alvíssimos, e a côr bronzeada do rosto, denunciavam nelle o exotismo da procedência, a influencia do sangue oriental. Excellente rapaz e intelligente, era um magnifico companheiro — d'estes que não se sentem, que não pesam.

Como todos os caçadores que são um pouco artistas, Diogo não desgostava do pittoresco, e tinha, de tempos a tempos, os seus caprichos de "toilette". Um dia, depois de ostentar aos nossos olhos de amadores uns lindos ceifões amarellos de pelle de cabra, preparada á cordoveza, debruados de encarnado, e orlados de phantasiosos florões, abertos sobre panno da mesma côr — obra-prima dalgum artista andaluz — para completar o effeito tirou da sacca um barrete vermelho, um barrete, com uma longa e fornida borla preta, e pol-o na cabeça, ageitando-o artisticamente. Diogo não era bonito, mas aqui a côr salvava o desenho.

Um esplendido modelo para um Fortuny! A paleta completa — uma orgia de cores! Vermelho, preto, encarnado, amarello, estrellantes, illuminados pelos raios do sol nascente, e destacando sobre o fundo glauco do mar! O que faltou foi o pintor.

Chegou a vez do cigarro, e a bolsa do tabaco e o fuzil de Diogo também eram elegantemente historiados.

Depois de o accender, elle relanceou os olhos alegres sobre nós, acabando pelos pôr em Bulhão Pato.

No olhar de Diogo havia uma provocação á galhofa, na sua boca brincava um sorriso gaiato.

Então Pato, que estivera a olhar para elle, desde a imprevista apparição do barrete vermelho, disse-lhe, com uma grande seriedade:

— Estás bonito, estás. Pareces o bey de Tunis!

Bey Sadok (detalhe) por Ahmed Osman c. 1865.
Imagem: TheHuffingtonPost International

O effeito foi fulminante, e a gargalhada geral. O próprio Diogo ria como um perdido.

O ataque não ficou, porém, sem réplica. Cruzados os ferros, houve alguns "coups de bonton" bem executados, bons ataques e boas respostas, próprias de dois jogadores que se conheciam, que se estimavam e que se respeitavam. Um assalto de chistes para a risota.

Travado sobre a superfície das aguas, participou da natureza dellas — os golpes não eram sanguinolentos, mas eram salgados... E por isso lá ficaram no "salso argento".

E nós ainda a rir, um barco a passar perto, e um dos filhos do Lourenço a gritar-lhe:

— Ai, minha perna, sr. doutor!

Catraio e cacilheiro, gravura, João Pedroso, 1860.
Imagem: Hemeroteca Digital

Os varinos acudiram á resposta, na linguagem que lhes é peculiar, e que, se é própria, não é correcta. Elles usam de bragas — mas não é na lingua.

As nossas baterias voltaram-se então para elles, e quando, já longe, não os podíamos ouvir, ainda os viamos gesticular... Era uma diversão aquella quasi obrigada, entre os frequentadores do rio.

As gaivotas vinham, ás vezes, reconheccr-nos de tão perto, que, apesar de não cultivarmos este gé- nero de "sport", se ellas se contassem á ida, haviam de achar alguma de menos.

Isto, porém, era raro. Patos também, se passavam ao alcance, eram saudados, mas de ordinário alteavam, ao ver-nos, e apesar do que se costuma dizer, não lhes chegava o chumbo — não caíam.

Um dia foi que o "lever de rideau" — o prologo — esteve quasi a ser a tragedia. A espingarda de Bulhão Pato — era a de Eybar — deixara-a elle ficar em Allemquer, onde fora caçar, e Cabral, que de lá a trouxera, mandou-lh'a na véspera. Cabral —um grande e experimentado caçador — era tudo quanto ha de mais cuidadoso; podia-se-lhe chamar sem "calembour" [trocadilho], o rei das cautelas. Mas uma vez, todos erram, e quando Bulhão Pato, que tinha o costume de dar um fogacho á espingarda, antes de principiar a atirar, o fez sem a menor desconfiança, porque nenhum dos pistons trazia fulminanie, d'um dos canos saiu incendiada a polvora solta, mas o outro disparou um tiro a valer! Encaramo-nos Todos... Estavamos [felizmente] illesos.

O que nos valeu loi o ter elle, também prudente, disparado, como usava sempre, por cima da borda.

— Hein! disse o poeta — de que nós escapámos! Mestre Cabral d'esta vez esqueceu-se!

E foi este, em tantos annos, o único accidente. que teve assomos de gravidade.


Trafaria, c. 1900.
Imagem: Delcampe

— E o mar, nessas travessias? perguntará o leitor, curioso destes pormenores.

Como ao outono se segue o inverno, algumas fizemos em que o catraio do patrão Lourenço dançava um tanto sobre as aguas...

Um dia, que nós linhamos escolhido para dar uma saltada ao Juncal, amanheceu-nos carregado o céu, asperrinio o sudoeste, promettendo agua... de inundar um Sahara!... A resolução estava tomada, e nós fomos por terra a Belém. Lourenço, que não nos viera buscar, por ver a feia catadura do tempo, levou-nos ao caes, e ahi, com os braços abertos e as mãos espalmadas, mostrando-nos as ondas verde-escuras, crespas, picadas pelo vento, franjadas de espuma, e o mar deserto, disse-nos:

— Os senhores bem vêem... Nem um pau ao cimo d'agua! E accrescentou, para reforçar — Os outros senhores que aqui também costumam vir, foram-se para casa...

— Então você, Lourenço, não nos quer levar... Tem medo? perguntou Bulhão Pato, olhando depois para mim.

— Eu não, senhor. Medo não tenho, mas é que os senhores ficam enxovalhados. Leval-os, levo-os eu. Agora enxutos ... Por isso é que eu não respondo.

E o intrépido algarvio — elle era de Ferragudo — chamou, com o mesmo rosto sereno, os filhos, e saltámos todos para o barco. Armada a vela, que o vento logo enfunou, partimos. Atravessámos, com a borda quasi sempre rente da agua, e, uma ou duas vezes, eu senti fugir o banco debaixo de mim...

Já está morto um dos nossos companheiros d'então, que em taes casos se sentava logo em baixo, nos paneiros.

Práticos do rio, habituados a viver nelle, os nossos homens conheciam-n-o como os seus dedos; as correntes da agua e do vento viam-nas tam bem que, nesta manobra de virar de bordo, debaixo do vento, o catraio obedecia como um fino corcel, quasi sem parar na carreira, com tal certeza era feita, tão ajustados se concertavam os movimentos do que ia ao leme com o que cambiava o panno!

Iamos fazer o ultimo bordo, mais perto da terra, e que era o mais serio...

— Agora! disse o velho Lourenço, com os olhos na vela, ao filho, que ia em pé junto do mastro. O catraio, que estava a tocar no vento, parou um instante, atravessando; a vela cambiou e elle seguiu. Mas, nesses momentos, quem vae no barco e não é do mar, é que lhe sente o balanço...

Conforme elle dissera, chegámos a salvo, se não enxutos. Ainda assim a aspersão foi levissima, se attendermos ao que promettiam o céu, e o mar!...

Bulhão Pato teve muitas mais occasiões de affrontar a torva catadura do Padre Tejo, e depois, ao largo, as temerosas iras do Oceano. 

Die Mündung des Tajo bei Lissabon, Hubert Sattler, 1868.
Imagem: Salsburg Museum

Mas, como tanto se pode morrer afogado aqui como lá, sente-se um grande prazer, quando, roçando pelo perigo, lhe escapamos... pela tangente. (1)


(1) Zacharias d'Aça, O Tiro Civil n.° 137, domingo 1 de maio de 1898

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Tema: Bulhão Pato

Informação relacionada:
Bulhão Pato, Zacharias d'Aça, O Occidente n.° 717, 30 de novembro de 1898
O Occidente n.° 434, 11 de janeiro de 1891
Bulhão Pato, Paquita, Typographia Franco-Portugueza, 1866Bulhão Pato, Livro do Monte, georgicas, lyricas, Lisboa, Typographia da Academia, 1896
Francisco Zacharias d'Aça, Caçadas portuguezas: paizagens, figuras do campo,
Lisboa, Secção Editorial da Companhia Nacional Editora, 1898
 

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